Um Padre Católico Avalia A Série 'The Chosen'

16/05/2021

Cerca de dois meses atrás, assisti aos episódios existentes online de The Chosen(1) de Dallas Jenkins.

Bem, não sou muito interessado na maioria dos filmes que existe sobre Jesus. Há apenas dois de que gostei até certo ponto (vou deixá-los de fora, mas vocês poderão descobrir quais sejam ao longo deste artigo), e comecei a assistir The Chosen da forma que abaixo relato.

Minha abadia dos cônegos de Norbertine é facilmente reconhecida como um lugar muito conservador. Lidamos muito com o latim e canto, estudamos com o interesse de discípulos de mestres de grande autoridade tais como Santo Agostinho e Santo Tomás. Geralmente, nossos gostos não vão na direção de filmes sobre o Salvador lançados por evangélicos - exceto no caso desta série.

Estava eu em nossa sala de informática, quando ouvi uma discussão sobre The Chosen entre um confrade meu sacerdote e dois outros confrades também sacerdotes. Bem, o primeiro, vamos chamá-lo de Pe. X, tem opiniões muito fortes sobre filmes, os aprecia bastante e não gosta de filmes cristãos de segunda categoria, "cafonas". Ele falou sobre o quão maravilhoso The Chosen era. Eu nunca tinha ouvido falar dessa série. Em seguida, os outros dois, Pe. Y e Pe. Z contaram que ficaram comovidos com os episódios que viram e relataram que vários outros confrades tiveram a mesma experiência. Entre esses, todos, exceto um, quase diariamente, celebram regularmente a forma mais antiga da Missa em latim. Todos são discípulos criteriosos de Santo Tomás de Aquino e definitivamente da melhor escola, pela ortodoxia que praticam.

Bem, essa impressão subjetiva - antes, eu nunca teria imaginado o Pe. Z sendo levado às lágrimas por qualquer coisa - me convenceu de que eu deveria assistir aos episódios, e assim comecei. O resultado? Tive as mesmas impressões que os outros e estou ansioso pelos novos episódios assim que eles forem lançados, como a esperada exibição do episódio 4, da temporada 2, desta última terça-feira, que foi tão adorável quanto todos os demais.

Antes dessa experiência, eu teria alertado sobre o meio cinematográfico como sendo insuficientemente iconográfico ou litúrgico em sua forma. Essa é uma crítica aos filmes sobre Cristo muitas vezes encontrada entre os mais conservadores dos ortodoxos orientais, por exemplo. Com uma ressalva, pois não há dúvida de que as escrituras proclamadas liturgicamente, o poder dos santos sacramentos e as tradições sólidas da Igreja na homenagem às imagens sacras, têm prioridade sobre as apresentações ao vivo nos palcos, nos cinemas ou em cantatas. Aqueles primeiros são necessários e obrigatórios para todos os católicos, mas a Igreja nunca exigiu a frequência ou participação em obras dramáticas sagradas.

Mesmo assim, nós católicos inventamos o drama ao vivo, em movimento, apresentando os mistérios da salvação. Já no século IV havia indícios de peças e apresentações sagradas e, na Idade Média, isso se tornou um costume praticamente universal, pelo menos na Igreja de Rito Latino. A peça de mistério ou milagre acompanhou as grandes festas do ano, especialmente no Tempo da Paixão e em Corpus Christi. A mais famosa delas é a Peça da Paixão de Oberammergau - vide abaixo - que data do período barroco e ainda é encenada a cada dez anos, atraindo muitas pessoas de todo o mundo. O século passado viu a publicação e o renascimento na Inglaterra de peças medievais em vários lugares, como em Coventry(2). Essas peças tinham interlúdios humorísticos e eram extremamente divertidas, com um tom solene e devoto, mas também caloroso e humano.

Oberammergau, 1633. A praga está devastando a aldeia e os habitantes juram realizar A Paixão de Cristo a cada dez anos. O povo de Oberammergau manteve seu juramento. Por mais de 375 anos, eles trabalharam em sua peça a cada dez anos. Milhares vêm para apreciar a apresentação.

Estamos acostumados com essas concessões na arte sacra. Existem duas pinturas idênticas da natividade do Senhor? Dificilmente. Mesmo nos ícones existem diferenças de estilo e, além disso, o mesmo evento é retratado com personagens no estilo e vestimenta de várias épocas e regiões. O verdadeiro evento histórico é vestido à maneira dos tempos posteriores e ninguém vê isso como um abuso ou espiritualmente inútil.

Além disso, existem vários místicos, geralmente mulheres, que narraram suas próprias percepções e imaginações, movidas pela graça divina, dos eventos dos evangelhos, especialmente a infância e a paixão do Salvador que lemos com interesse porque, embora difiram amplamente entre si, transmitem a sabedoria e a visão do Espírito Santo agindo em suas imaginações de forma amorosa. Por exemplo, Santa Brígida da Suécia, Ven. Maria de Agreda e a Beata Anne Catherine Emmerich são diferentes nos muitos detalhes concretos que relatam. Portanto, não há proibição de adicionar histórias anteriores e detalhes à história do evangelho, desde que ele não seja deturpado. Aqui, no caso da série, não o é - até agora, pelo menos, já que continuará por algumas temporadas.

Dito isso, nossas únicas preocupações maiores sobre a produção de um filme sobre as narrativas do evangelho são duas. Primeiro, a apresentação deve ser ortodoxa, isto é, não racionalizar ou contradizer a narrativa do evangelho, como, por exemplo, na versão cinematográfica de Scorsese da "Última Tentação de Cristo" de Kazantzakis. Essa ortodoxia é belamente mostrada em "O Evangelho segundo Mateus", de Pasolini, com um mínimo de preenchimento dramático dos esparsos relatos do Evangelho, e em "A Paixão de Cristo" de Gibson, que usou livremente alguns dos detalhes das meditações da Bem-aventurada Ana Catarina. Em segundo lugar, o filme deve ser arte de qualidade - isto é, deve ser feito com habilidade e bom diálogo. Muitos filmes religiosos podem ser letalmente bajuladores ou de terceira categoria. Não cito nomes, pois não quero distrair o leitor que pode ter outras opiniões, mas digamos que a diferença seria assim entre um ícone, um afresco do Beato Angélico, ou uma Madonna de Bartolome Esteban Murillo e um santinho produzido em série. Acho que todos nós entendemos a diferença.

Os outros dois filmes que acabei de mencionar passam por esses dois testes, embora tenham estilos afetivos e artísticos muito diferentes.

Acho que The Chosen atende, até o momento, a esses testes também tanto quanto à ortodoxia (com uma exceção significativa que irei abordar posteriormente) e certamente pela habilidade artística realmente séria e profissional com a qual é representado.

Quanto à sua ortodoxia, Cristo é claramente divino, sendo o cumprimento literal da profecia do Antigo Testamento, com dons de conhecimento claro da Divindade e de suas criaturas, especialmente os corações humanos, possuindo poder para operar milagres reais e expulsar demônios reais, e que é plenamente consciente de sua identidade desde a infância, ao mesmo tempo em que exibe uma genuína personalidade humana e viril, capaz de verdadeira afeição humana e verdadeira humildade. Além disso, Jonathan Roumie, que desempenha lindamente o papel de Jesus, é um católico devoto que foi criado na ortodoxia grega. Em entrevistas, ele professa sua crença na centralidade dos sacramentos. Este é um Jesus que podemos aceitar facilmente!

Mas Jesus também é o Filho de uma Virgem Mãe. Isso fica claro no filme, no caso da virgindade colocada no sentido moral de que Cristo foi concebido sem relação sexual. No entanto, a tradição católica também insiste na virgindade física de Nossa Senhora, que requer um nascimento milagroso, com Ele tendo saído do ventre dEla, ao mesmo tempo que seu selo virginal permanece intacto, exibindo, assim, o mesmo poder que Ele também exibiu em Seu corpo ressuscitado ao passar através da pedra imóvel(3) e das portas do quarto superior(4). Neste aspecto, o pequeno vídeo de Natal que foi lançado na promoção da série está errado, pois mostra Nossa Senhora sofrendo as dores do parto, coisa bastante indecorosa e contrária à nossa crença, que está reiterada no Catecismo da Igreja Católica e na catequese de São João Paulo II. 

Esses são apenas os pronunciamentos mais recentes; além disso, existe toda a tradição católica. Existem os Padres da Igreja, as liturgias orientais, os hinos de Natal da Liturgia Romana das Horas, o Catecismo Romano do Concílio de Trento e muitos outros testemunhos da Tradição. Especialmente, há uma declaração na liturgia pós-conciliar. Num dos prefácios das Missas votivas da Bem-aventurada Virgem Maria aos pés da Cruz, aprovadas por São João Paulo, lemos: "Para renovar o gênero humano quisestes, na vossa sabedoria, que junto à cruz do novo Adão estivesse a nova Eva, a fim de que ela, que pela virtude do Espírito Santo foi sua Mãe, por novo dom de vossa bondade fosse companheira da sua paixão, e as dores que não sofreu ao dar à luz o Filho as sentisse cruelmente ao fazer-nos renascer para vós"(5).

Eu insisto neste ponto, uma vez que existem muitos católicos ortodoxos, padres e leigos, que não sabem que esta não é simplesmente uma opinião piedosa, mas um ensinamento comum na exposição da Igreja sobre o Credo como registrado em seus dois catecismos oficiais. Mesmo os reformadores Calvino e Lutero nunca teriam questionado essa crença; ambos professaram a virgindade perpétua de Nossa Senhora. Mesmo assim, se você assistir a série, como vem sendo exibida até o momento, a cena do parto não está entre os episódios. Assim você pode evitá-la simplesmente não assistindo ao teaser de Natal.

Aqui, também, há algo a se observar em episódios futuros: eles apresentarão o ensino atual (mas não clássico, da reforma) entre os protestantes de que Nossa Senhora teve outros filhos de São José? Essa é uma armadilha na qual espero que a equipe artística e os roteiristas não caiam, porém resta ver se irão ou não cair.

Quanto aos sacramentos e ao primado de Pedro, até agora os episódios são claros. Há referências diretas e indiretas ao batismo e à sagrada Eucaristia em todos eles. Quando as criancinhas, em um episódio encantador, perguntam ao Senhor de quais alimentos ele mais gosta, ele diz: "Gosto especialmente de pão".

Acho que o diretor e os escritores são sensíveis ao público católico; embora sejam evangélicos, eles consultam padres católicos bem como seus próprios pastores e um rabino judeu messiânico.

Entretanto, há uma outra coisa que não é precisamente doutrinária ou artística. Cada época da arte cristã, como mencionei anteriormente, projetou um pouco de sua própria experiência visual e comportamento na história do evangelho. Isto é normal. Da mesma forma em The Chosen, a relação entre o Senhor e seus apóstolos é afetada pelas relações fáceis que as pessoas atualmente têm com figuras de autoridade em nossas culturas, tanto na americana como na européia. Portanto, temos um Jesus que talvez seja muito menos reservado e sério do que um rabino, ou mesmo um pai de família, teria sido no primeiro século de nossa era. 

Nas culturas tradicionais, os que têm autoridade não riem, nem brincam, nem sorriem com facilidade, exceto com seus iguais e não brincam com seus subordinados. O Jesus do The Chosen mostra toda essa gama de emoções com todos em sua volta, ao rir um pouco e fazer comentários irônicos. Mesmo assim, ele se apresenta de forma clara e seriamente orante por estar ciente de sua paixão vindoura. O tom particularmente contemporâneo de algumas brincadeiras e conversas não obscurece o sentido sério e sobrenatural da missão do Salvador; antes, isso pode tornar mais acessível para as pessoas de hoje em dia que esperam que papas, reis e rainhas, pais e clérigos sejam mais próximos e menos intimidantes. Nenhuma das concessões presentes vai além do que se pode ver em uma peça de mistério medieval(6).

As personagens dos apóstolos (especialmente Mateus e Pedro), Nossa Senhora, Madalena, Nicodemos e outros são apresentadas de uma forma verdadeiramente encantadora, que faz com que o espectador lhes responda com verdadeiro sentimento e carinho. Esta série creio que de fato ajudará o uso da imaginação na oração discursiva, para aqueles de nós que acham isso útil. Qualquer obra de arte que aumente nosso desejo pela presença e companhia do Senhor e seus santos é uma grande dádiva para nós católicos, enquanto aguardamos o grande, o visível, o audível, o palpável reencontro dos justos no Último Dia, quando os sinais, os sacramentos, as imagens e os ícones, bem como os filmes, passarão.

Enquanto isso, como ensina Santo Agostinho, a graça eficaz nos move por meio do deleite, e esta deliciosa série, The Chosen, é realmente uma graça.

Pe. Hugh Barbour, O. Praem.

Original em inglês: Catholic Answers


Notas:

  1. 'Os Escolhidos' em tradução livre.
  2. Coventry Mystery Plays - Sobre peças de mistério e milagrosas, inclusive inglesas, ler aqui. No site Players of St Peter- sem tradução para o português - há dois vídeos que exemplificam essas peças inglesas.
  3. Somente São Mateus nos diz que a pedra ainda bloqueava a entrada da tumba quando Cristo apareceu. Ele diz: "Depois do sábado, quando amanhecia o primeiro dia da semana, Maria Madalena e a ou­tra Maria foram ver o túmulo. E eis que houve um violento tremor de terra: um anjo do Senhor desceu do céu, rolou a pedra e sentou-se sobre ela." (Mt. 28, 1-2). O anjo não rola a pedra para que Cristo saia, mas para mostrar às mulheres que o Cristo já havia ressuscitado e saído do túmulo.
  4.  "Na tarde do mesmo dia, que era o primeiro da semana, os discípulos tinham fechado as portas do lugar onde se achavam, por medo dos judeus. Jesus veio e pôs-se no meio deles. Disse-lhes ele: 'A paz esteja convosco!'" (Jo 20, 19).
  5.  S. João Paulo II ainda tratou da Maternidade de Maria obtida aos pés da Cruz em Audiência Geral datada de 11 de Maio de 1983.
  6.  Peças de mistério medievais são aquelas centradas na representação de histórias bíblicas em igrejas, voltadas a assuntos como a Criação, Adão e Eva, o assassinato de Abel e o Juízo Final . Freqüentemente, eram realizadas em ciclos que podiam durar dias. O nome deriva de mistério usado em seu sentido de milagre.