“Joana D’Arc” De Mark Twain

08/06/2023
Eugène-Romain Thirion, “Joana d'Arc escutando as vozes” 1876
Eugène-Romain Thirion, “Joana d'Arc escutando as vozes” 1876

O livro de Mark Twain sobre Santa Joana D'Arc - baixar aqui - mostra que Deus pode trabalhar de maneira espetacular por meio dos candidatos mais improváveis, sejam donzelas humildes ou autores céticos. 

"Prefiro Joana d'Arca qualquer outro dos meus livros e ela é, de fato, minha melhor obra; estou absolutamente convencido disso. Além disso, ela me deu sete vezes mais prazer do que qualquer outra; doze anos de preparação e dois anos de redação. Os demais não precisaram de preparação e não tiveram." — Mark Twain

Joana d'Arc, de Mark Twain, é talvez o melhor romance já escrito por um americano. É um livro com o poder de mudar a vida de seus leitores. No entanto, normalmente sou recebido com um olhar surpreso, sempre que menciono isso a amigos, por ter juntado os nomes "Joana d'Arc" e "Mark Twain" tão próximos na mesma frase. A maior obra escrita pelo homem que é amplamente considerado o maior autor de todos os tempos da América permanece obscura hoje.

O próprio Mark Twain inicialmente insistiu no anonimato enquanto o livro estava sendo publicado pela primeira vez em fascículos na Harper's Magazine, na esperança de que assim o público o levasse mais a sério.

Eu comprei meu próprio exemplar de Joana d'Arc antes das férias, alguns meses atrás, sabendo que logo teria muito tempo de leitura em aviões e ônibus. Na época dessa compra, meu interesse maior era em ler um livro escrito por Mark Twain, e não sobre Santa Joana d'Arc. Meu interesse pela vida e caráter de Santa Joana crescia a cada página.

A pesquisa de Twain em preparação para a redação deste livro foi muito meticulosa. Contada pelos olhos do pajem fictício de Joana d'Arc, que é vagamente baseada em seu pajem real, é uma lembrança detalhada dos feitos da santa, sejam famosos ou obscuros, e uma exploração do efeito extraordinário que sua pessoa certamente deve ter tido sobre aqueles que ela sensibilizou. É um romance cheio de emoção, o que não é surpreendente ao se considerar o assunto. Twain descreveu assim o cerco de Orléans:

Uma lança de ferro atingiu-a entre o pescoço e o ombro, penetrando pela armadura e rasgando-lhe a carne. Ao sentir a dor lancinante e ver o sangue a lhe escorrer pelo peito, ela se assustou e, pobre menina, pôs-se a chorar caída ao chão. Os ingleses deram gritos de alegria e lançaram-se em grande número para dominá-la. Por alguns minutos toda a batalha se concentrou ali onde ela estava. Ingleses e franceses lutaram desesperadamente, pois Joana representava a França; ela era a própria França ali, para ambos os lados. Quem ficasse com ela, ficaria com a França, para sempre. Foi ali, naquele pequeno espaço, que durante dez minutos lutou-se para decidir o futuro da França e ele foi decidido.

O que achei muito surpreendente sobre o romance, considerando algumas das noções do autor, foi como o romance nunca se esquivou, nem minimizou, a grande fé de Santa Joana D'Arc que a levou a fazer seus grandes feitos. Mark Twain, um proeminente autor do movimento do Realismo Americano, simplesmente não conseguia contornar a fé da santa enquanto escrevia um romance realista sobre ela. "Joana d'Arc" tornou-se mais longo do que um romance típico de Mark Twain, dando assim ao leitor muito mais tempo para mergulhar na vida de um santo. Este livro despertou meu desejo de viver uma vida santa de uma maneira que eu não havia encontrado desde que li Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski.

Mark Twain não era católico. Que ele tinha fortes reservas em relação à religião organizada, isso não era segredo. "A Connecticut Yankee in King Arthur's Court"(1), um de seus romances mais famosos, chegou a criticar fortemente a Igreja. E, no entanto, a reverência exibida em Joana d'Arc poderia levar qualquer leitor a acreditar que seu autor certamente deve ter sido um católico devoto, ou talvez até mesmo um padre, se esse leitor se abstivesse de verificar de quem é o nome na capa. Twain escreveu sobre ela:

O contraste entre ela e o século em que viveu é o contraste entre o dia e a noite. Ela dizia a verdade quando mentir era a regra entre os homens; era honesta quando a honestidade era uma virtude perdida; mantinha sua palavra quando as palavras já não tinham mais valor; entregou sua mente a grandes ideias e propósitos enquanto outras grandes mentes deixavam-se desperdiçar com futilidades e ambições mesquinhas… quando a esperança e a coragem haviam perecido no coração de seu país, ela foi um baluarte de coragem… Ela foi talvez a única criatura absolutamente desprendida cujo nome se inscreveu na história profana. Nenhum vestígio sequer de alguma ação voltada para o seu próprio beneficio pode ser encontrado em qualquer palavra ou ato seu.

Uma vida bem vivida, movida por uma fé profunda, tem o poder de cativar. A vida e o exemplo surpreendente de Santa Joana d'Arc conseguiram cativar até o próprio Samuel Clemens(2), quando escreveu sobre ela: "… a vida mais nobre que já nasceu neste mundo, exceto apenas Uma".

A história de uma camponesa, insistindo que foi chamada por Deus, que passa a liderar um exército à beira da aniquilação e virar a maré de uma guerra de um século em questão de meses, é realmente muito convincente. O julgamento de uma menina analfabeta, falsamente acusada, defendendo-se brilhantemente perante um pseudo-tribunal, é também uma história envolvente, embora com um final trágico. Twain escreveu sobre seu julgamento:

Joana olhou aquelas caras esfaimadas com um olhar inocente e tranquilo. Humildemente, então, e com toda delicadeza, ela deu aquela resposta que entrou para a história e fez sumir as cruéis expressões de alegria do rosto de seus algozes, como se retiram as teias de aranha com um leve gesto: 'Se eu não estiver em estado de Graça, peço a Deus que me coloque; se eu estiver; peço a Deus que me mantenha nele.'

Mas a Joana d'Arc de Mark Twain, como qualquer bom romance, é muito mais do que uma mera narrativa de eventos. É uma articulação do grande poder de inspiração de um ardente santo.

Sobre sua aparência, Mark Twain escreveu:

Jamais houve olhos tão lindos como os de Joana e jamais haverá. Seus olhos tinham algo que era profundo e maravilhoso, algo que transcendia as qualidades meramente humanas Falavam todas as línguas, dispensando as palavras. Comunicavam o que ela queria com um simples olhar, um único olhar que era capaz de fazer um mentiroso confessar sua mentira, de fazer com que um homem orgulhoso se tornasse humilde, de encher de coragem o coração de um covarde e fazer desaparecer a coragem dos mais valentes. Bastava um olhar seu para apaziguar ressentimentos e ódios, tornar tranquilo um espírito revolto, dar fé e esperança a quem já as havia perdido, e purificar uma mente impura. E que capacidade de persuasão! Sim, persuasão é a qualidade que melhor define aquele olhar. Quem, alguma vez, não se deixou persuadir por ele?

Sobre sua ternura, Mark Twain escreveu:

Nossas tropas gritavam de alegria até ficarem roucas e a certa altura começaram a chamar o general, pois queriam homenageá-la pela vitória, porém custamos a encontrá-la. Quando finalmente a encontramos, ela estava sozinha, sentada junto a um amontoado de cadáveres. Tinha o rosto escondido entre as mãos e chorava. Chorava porque era uma menina e aquele seu coração destemido era também um coração de menina, com toda a misericórdia e toda a ternura que lhe são naturais. Joana pensava nas mães daqueles soldados mortos, tanto nas dos nossos quanto nas dos inimigos.

Sobre sua fidelidade, Mark Twain escreveu:

Joana d'Arc não era como qualquer um. Ela era fiel a seus princípios, à verdade, à sua palavra - a fidelidade era parte integrante de seu ser. Ela não podia mudar. Não podia pôr de lado sua fidelidade. Seria fiel a qualquer custo, ainda que esse custo fosse a ameaça do inferno.

E sobre sua piedade, Mark Twain escreveu:

Por ordem dele Beaupère voltou a inquirir a acusada. Como estávamos na Quaresma, ele esperava poder apanhá-la em alguma negligência de suas obrigações religiosas. Eu poderia ter-lhe poupado a decepção. Ora, a religião era a vida dela! Joana jamais a negligenciara.

Santa Joana d'Arc é um modelo para nós, como todos os santos. Sua vida é a prova histórica de que a Providência pode operar espetacularmente por meio de qualquer um de nós, incluindo os candidatos mais improváveis, desde que nossos corações estejam cheios da humildade que torna nossos ouvidos receptivos ao chamado de Deus. Aqueles atos surpreendentes que foram realizados pela Donzela de Orléans foram a ela destinados em particular. Mas o apelo à entrega a Deus, para assim nos abrirmos à fé pela qual tudo se torna possível, é para todos nós. Santa Joana d'Arc se entregou assim e mostrou a todos nós quais são essas possibilidades.

A capacidade de inspiração de Santa Joana D'Arc não terminou com o seu martírio em 1431. A sua memória permaneceu conosco ao longo dos séculos. Foi no final do século XIX que um humorista e cético, que também teria sido considerado uma candidato improvável para a tarefa que tinha pela frente, escreveu para nós o mais católico dos romances para que a memória dela permanecesse viva nos dias de hoje.

Santa Joana D'Arc, rogai por nós!

"A verdade é mais estranha que a ficção, mas é porque a ficção é obrigada a manter as possibilidades; A verdade não é." —Mark Twain

Autor: Zubair Simonson

Original em inglês: National Catholic Register



Notas:

(1) - Sem tradução para o português. Numa tradução livre: "Um Ianque na Corte do Rei Arthur".

(2) - Nome verdadeiro de Mark Twain.