Totalitarismo E As Cinco Fases Da Desumanização

04/12/2021

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A obra seminal de Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo (1948), contribui para uma leitura séria do mundo que vemos se desenvolver ao nosso redor no ano de 2021. Na verdade, nos encontramos em um impasse de proporções épicas, onde a essência do que significa ser humano está em jogo.

"A tentativa totalitária da conquista global e do domínio total constituiu a resposta destrutiva encontrada para todos os impasses. Mas a vitória totalitária pode coincidir com a destruição da humanidade, pois, onde quer que tenha imperado, minou a essência do homem" - Hannah Arendt, Origens of Totalitarismo, 1ª edição, 1948.

Embora possa ser difícil afirmar que - pelo menos no Ocidente - nos encontramos mais uma vez sob o jugo de regimes totalitários comparáveis aos que tão bem conhecemos do século 20, não resta dúvidas de que estamos diante de um paradigma global que traz tendências totalitárias em constante expansão, e essas não precisam nem mesmo ser planejadas intencionalmente ou maliciosamente.

Como discutiremos posteriormente, os impulsionadores modernos de tais tendências totalitárias estão, em sua maior parte, convencidos - com o apoio das massas - de que estão fazendo a coisa certa porque afirmam saber o que é melhor para as pessoas em um tempo de crise existencial. O totalitarismo é uma ideologia política que pode se espalhar facilmente na sociedade sem que grande parte da população perceba de início e antes que seja tarde demais. Em seu livro, Hannah Arendt descreve meticulosamente a gênese dos movimentos totalitários que acabaram se transformando nos regimes totalitários do século 20 na Europa e na Ásia, e os atos indizíveis de genocídio e crimes contra a humanidade em que isso resultou.

Como Arendt certamente nos advertiria, não devemos ser enganados pelo fato de que não vemos no Ocidente hoje nenhuma das atrocidades que foram a marca registrada dos regimes totalitários do comunismo sob Stalin ou Mao e do nazismo sob Hitler. Esses eventos foram todos precedidos por uma ideologia de massa que se espalhou gradualmente e, subsequentemente, por meio de campanhas ideológicas impostas pelo Estado, medidas que promoviam o controle aparentemente "justificável" e "cientificamente comprovadas", ações destinadas a vigilância permanente e, em última análise, uma exclusão passo a passo de certas pessoas de partes da sociedade, pois representavam "um risco" para os demais ou por ousarem pensar fora do que era considerado um pensamento aceitável.

Em seu livro The Demon in Democracy - Totalitarian Temptations in Free Societies (1), o advogado polonês e membro do Parlamento Europeu Ryszard Legutko não deixa dúvidas de que existem semelhanças preocupantes entre muitas das dinâmicas dos regimes totalitários comunistas e das democracias liberais modernas, quando ele observa: "O comunismo e a democracia liberal provaram ser entidades unificadoras, levando seus seguidores a como pensar, o que fazer, como avaliar os eventos, o que sonhar e que linguagem usar".

Essa também é a dinâmica que vemos em ação hoje em muitos níveis da sociedade globalizada. Todos os leitores, mas especialmente políticos e jornalistas, interessados ​​na liberdade humana, na democracia e no Estado de direito, devem ler cuidadosamente a Parte III, em que trata sobre "O Movimento Totalitário", no muito aclamado livro de Hannah Arendt. Ela explica quanto tempo antes dos regimes totalitários assumirem o poder real e estabelecerem o controle completo, seus arquitetos e facilitadores já preparavam pacientemente a sociedade - não necessariamente de forma coordenada ou com esse objetivo em mente - para conquistá-la. O próprio movimento totalitário é impulsionado pela promoção agressiva e às vezes violenta de uma certa ideologia dominante, por meio de propaganda implacável, censura e pensamento de grupo (2). Também sempre inclui interesses econômicos e financeiros importantes. Tal processo, então, resulta em um Estado cada vez mais onipotente, assistido por uma série de incontáveis grupos, instituições e corporações (internacionais), que afirmam ter o controle da verdade, da linguagem, do que é bom para seus cidadãos e a sociedade como um todo.

Embora haja, é claro, uma vasta diferença entre os regimes totalitários comunistas do século 21, tais como na China e na Coréia do Norte, e as democracias liberais ocidentais com suas crescentes tendências totalitárias, o que parece ser o elemento unificador entre os dois sistemas hoje é o controle do pensamento e a gestão comportamental de suas populações. Esse desenvolvimento foi muito aprimorado por meio do que foi cunhado pela professora de Harvard Shoshana Zuboff como "capitalismo de vigilância". O capitalismo de vigilância, escreve Zuboff, é "Um movimento que visa impor uma nova ordem coletiva baseada em certeza total". É também - e aqui ela não mede suas palavras - "Uma expropriação de direitos humanos críticos que pode ser mais bem compreendida como um golpe vindo de cima: uma destituição da soberania dos indivíduos". O Estado moderno e seus aliados, sejam comunistas, liberais ou não, têm - pelas razões acima e outras - um desejo insaciável de coletar grandes quantidades de dados sobre cidadãos e clientes e usar esses dados extensivamente para controle e influência.

No lado comercial, temos todos os aspectos do rastreamento online do comportamento e das preferências das pessoas, brilhantemente explicados no documentário "O Dilema das Redes" (disponível no Netflix ou dublado aqui), nos confrontando com a realidade de que "Nunca antes um punhado de designers de tecnologia teve tanto controle sobre a forma como bilhões de nós pensamos, agimos e vivemos nossas vidas". Ao mesmo tempo, vemos em operação o sistema de "crédito social" implementado pelo Partido Comunista Chinês que usa big data e imagens das gravações em tempo real da TV Central da China - CCTV - para gerenciar o comportamento das pessoas em áreas públicas por meio de um sistema de prêmios e punições.

O QR code obrigatório introduzido pela primeira vez na China em 2020 e posteriormente em estados democráticos liberais ao redor do mundo em 2021, para manter o controle permanente do estado de saúde das pessoas e como um pré-requisito para participar da sociedade, é o fenômeno mais recente e profundamente preocupante desse mesmo capitalismo de vigilância. Aqui, a linha divisória entre a mera tecnocracia e o totalitarismo torna-se quase extinta sob o pretexto de "proteger a saúde pública". A atual tentativa de colonização do corpo humano pelo Estado e seus parceiros comerciais, alegando ter os melhores interesses em mente, faz parte dessa dinâmica preocupante. Onde foi parar de repente o mantra progressista "Meu corpo, minhas regras"?

Então, o que é totalitarismo? É um sistema de governo (um regime totalitário) ou um sistema de controle crescente implementado de forma diversa (um movimento totalitário) - apresentando-se em diferentes formas e em diferentes níveis da sociedade - que não tolera liberdade individual ou pensamento independente e, em última instância, busca subordinar e dirigir totalmente todos os aspectos da vida humana individual. Nas palavras do escritor cristão americano Rod Dreher - aqui e aqui - o totalitarismo "é um estado em que nada pode ser permitido que contradiga a ideologia dominante de uma sociedade".

Na sociedade moderna, onde vemos essa dinâmica em ação, o uso da ciência e da tecnologia desempenha um papel decisivo ao permitir que tendências totalitárias se consolidem de maneiras que os ideólogos do século 20 poderiam apenas sonhar. Além disso, acompanhando o totalitarismo em qualquer estágio, ocorre a desumanização institucionalizada e é o processo pelo qual toda ou parte da população é submetida a políticas e práticas que consistentemente violam a dignidade e os direitos fundamentais do ser humano e que podem, em última instância, levar à exclusão e social ou, no pior caso, extermínio físico

A seguir, examinaremos mais de perto alguns dos princípios básicos do movimento totalitário descritos por Hannah Arendt e como isso permite a dinâmica de desumanização institucionalizada que hoje observamos. Na conclusão, veremos brevemente o que a história e a experiência humana podem nos dizer sobre como libertar a sociedade do jugo do totalitarismo e de suas políticas desumanizantes.

O leitor deve entender que não estou de forma alguma comparando ou equiparando os regimes totalitários do século 20 e suas atrocidades ao que vejo como tendências totalitárias crescentes e as atuais políticas resultantes. Em vez disso, como deve ser o papel de um discurso acadêmico robusto, vamos examinar criticamente o que assistimos na sociedade de hoje e analisar os fenômenos históricos e políticos relevantes que podem nos instruir sobre como podemos lidar melhor com o atual curso de eventos que, se não corrigido, não é um bom presságio para um futuro de liberdade e Estado de direito.

I. O funcionamento do totalitarismo

Quando falamos em "totalitarismo", a palavra é usada neste contexto para descrever o todo de uma ideologia política que pode se apresentar em diferentes formas e etapas, mas que sempre tem como objetivo último o controle total sobre as pessoas e a sociedade. Conforme descrito acima, Hannah Arendt distingue dentro do totalitarismo entre o movimento totalitário e o regime totalitário. Acrescento a essa categorização o que acredito ser um estágio inicial do movimento totalitário, chamado de "tendências totalitárias" por Legutko, e que chamo de totalitarismo ideológico em relação aos desenvolvimentos atuais. Para que o totalitarismo tenha uma chance de sucesso, Hannah Arendt nos diz que três fenômenos principais e intimamente interligados são necessários: o movimento de massa, o papel de liderança da elite na direção dessas massas e o emprego de propaganda implacável.

As massas solitárias

Para o seu estabelecimento e longevidade, o totalitarismo depende, como primeiro passo, do apoio de massa que é obtido jogando com um sentimento de crise e medo permanentes na sociedade. Isso então alimenta o desejo das massas de que os responsáveis constantemente tomem "medidas" e mostrem liderança para repelir a ameaça que foi identificada como um perigo para toda a sociedade. Os responsáveis podem "permanecer no poder apenas enquanto continuarem se movendo e colocarem tudo ao seu redor em movimento". A razão para isso é que os movimentos totalitários se baseiam no fracasso clássico das sociedades ao longo da história humana em criar e manter um senso de comunidade e propósito e, ao invés, criam seres humanos isolados e egocêntricos sem um propósito claro e abrangente na vida.

As massas que seguem o movimento totalitário se perdem e como consequência ficam em busca de uma identidade clara e um propósito de vida que não encontram nas circunstâncias atuais: "A atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa (...). A principal característica do homem da massa não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais."

Isso soa bem familiar para qualquer pessoa que observe a sociedade moderna. Em uma época em que as mídias sociais e tudo o mais que é apresentado nas telas definem o tom acima de tudo e todos e onde as adolescentes caem em depressão e aumentam as tentativas de suicídio por causa da falta de "curtidas" em suas contas do Instagram, de fato vemos um exemplo desconcertante dessa falta de relacionamentos normais que deveriam envolver encontros pessoais levando a trocas profundas. Nas sociedades comunistas é o Partido que se propõe a destruir os laços religiosos, sociais e familiares para dar lugar a um cidadão que pode ser totalmente submetido ao Estado e aos ditames do Partido, como vemos acontecer na China e na Coréia do Norte. Nas sociedades ocidentais hedonistas e materialistas, essa mesma destruição acontece por diferentes meios e sob o disfarce neomarxista de "progresso" incontrolável, onde a tecnologia e uma falsa definição do propósito da ciência corroem a compreensão do que significa o ser humano: "Na verdade", escreve Dreher, "esta tecnologia e a cultura que dela emergiu reproduzem a atomização e a solidão radical que governos comunistas totalitários costumavam impor a seus povos cativos para torná-los mais fáceis de controlar". Não apenas o smartphone e a mídia social reduziram drasticamente a interação humana genuína, como qualquer professor ou pai de uma criança em idade escolar pode atestar, mas a estrutura social nos últimos tempos se deteriorou drasticamente por meio de outras mudanças importantes na sociedade.

O crescente policiamento do governo e da BigTech sobre a linguagem, as opiniões e as informações científicas na pandemia de SARS-CoV-2, acompanhado por um nível de censura nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial, reduziu e empobreceu enormemente o discurso público e minou seriamente a confiança na ciência, na política e na comunidade.

Em 2020 e 2021, a maioria das medidas bem-intencionadas, muitas vezes mal assessoradas, impostas principalmente pelo governo contra o Covid, tais como lockdowns, obrigatoriedade de máscara, condições de acesso às instalações públicas e passaporte vacinal limitaram ainda mais a interação humana livre que qualquer sociedade precisa para preservar e fortalecer o seu tecido social. Todos esses desenvolvimentos impostos externamente, desde diferentes origens, contribuem para que os seres humanos, especialmente os jovens, cada vez mais e de forma mais duradoura sejam privados daquelas "relações sociais normais" sobre as quais Hannah Arendt trata. Da noite para o dia sem alternativas, isso leva, por sua vez, grandes grupos da população - a maioria deles sequer se apercebe - para os braços de ideologias totalitárias. Esses movimentos, no entanto, nas palavras de Arendt, exige "lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual(..) [uma vez que] a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana".

O objetivo final do totalitarismo, ela explica, é a a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida, envolvendo assim todos e cada um dos aspectos da vida, pelo qual as massas devem ser mantidas por um movimento totalitário constantemente

acionado, pois "um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe". Longe de desejar minimizar a gravidade e a urgência dessas questões em si mesmas, ou a necessidade, como sociedade, de conceber maneiras de lidar com as ameaças existenciais que delas decorrem, as narrativas políticas e midiáticas relativas ao Covid são exemplos de tal totalitarismo ideológico que quer controlar completamente como os seres humanos pensam, falam e agem nessa área da vida, mantendo-os em perpétua ansiedade por meio de atualizações de notícias dramáticas regulares e bem planejadas (uma ferramenta que está sendo usada para isso com sucesso em todo o mundo são as constantes coletivas de imprensa bem ensaiadas de de ministros em seus ternos, de semblantes sério, atrás de barreiras de acrílico e ladeados por especialistas e bandeiras do país), histórias comoventes e apelos à ação imediata ("medidas"), para lidar com novas ameaças (percebidas ou reais) à sua pessoa, à sua causa e à sociedade como um todo. O medo é a principal força motriz para manter essa ansiedade e ativismo perpétuos.

O papel da elite

Hannah Arendt passa então a explicar um fenômeno perturbador dos movimentos totalitários, que é a sua enorme atração exercida sobre as elites, o "espantoso número de homens ilustres que são simpatizantes, companheiros de viagem ou membros registrados dos partidos totalitários". Essa elite acredita que o necessário para resolver os problemas agudos que a sociedade enfrenta atualmente é a destruição total, ou pelo menos o redesenho total, de tudo o que foi considerado como bom senso, lógico e sabedoria estabelecida até então.

Quando se trata da crise do Covid, a conhecida capacidade do corpo humano de construir imunidade natural contra a maioria dos vírus que já encontrou não é mais considerada relevante de forma alguma por aqueles que impõem mandatos de vacinação, rejeitando os princípios fundamentais da biologia humana e o comprovado conhecimento médico.

Para conseguir essa reforma total em prol do controle completo, as elites estão dispostas a trabalhar com qualquer pessoa ou organização, incluindo aquelas pessoas chamadas de "a ralé" por Arendt, cujas características são "fracasso na vida profissional e social, perversão e

desastre na vida privada". Um bom exemplo disso são as negociações do Ocidente com o Partido Comunista Chinês. Embora a flagrante corrupção e abusos dos direitos humanos - incluindo a campanha genocida contra os Uigures em Xinjiang - perpetrados por essa instituição de repressão ao longo da história até o presente estejam bem documentados, assim como seu papel em encobrir o surto de 2019 do vírus SARS-CoV-2 em Wuhan, possivelmente resultante de um vazamento de laboratório, a maioria dos países do mundo se tornou tão dependente da China que está disposta a fazer vistas grossas e cooperar com um regime que está disposto a pisar em tudo o que a democracia liberal representa.

Hannah Arendt descreve outro elemento perturbador que faz parte do que ela chama de "aliança temporária entre a ralé e a elite" e que é a disposição dessas elites de mentir para obter e reter o poder através da "possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes". Até o momento, não é um fato comprovado que os governos e seus aliados estejam mentindo sobre as estatísticas e os dados científicos em torno do Covid-19; no entanto, é claro que existem muitas inconsistências sérias que não estão sendo suficientemente tratadas.

Ao longo da história dos movimentos e regimes totalitários, os infratores foram capazes de lidar com isso porque entenderam muito bem qual é a principal preocupação do homem ou da mulher simples em suas atividades diárias de fazer a vida funcionar para suas famílias e outros dependentes, como magistralmente expresso por Arendt: "Ele [Göring] demonstrou sua suprema capacidade de organizar as massas sob o domínio total, partindo do pressuposto de que a maioria dos homens não são boêmios, fanáticos, aventureiros, maníacos sexuais, loucos nem fracassados, mas, acima e antes de tudo, empregados eficazes e bons chefes de família". E: "Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas privadas."

Todos ansiamos por segurança e previsibilidade e, portanto, uma crise nos faz procurar maneiras de obter ou manter a segurança e a proteção e, quando necessário, a maioria está disposta a pagar um alto preço por isso, incluindo renunciar às suas liberdades e viver com a noção de que talvez não lhes tenham contado toda a verdade sobre a crise em questão. Não deveria ser surpresa, portanto, que considerando o efeito potencialmente letal que o coronavirus pode ter sobre os seres humanos, nosso medo muito humano da morte levou a maioria de nós jogarmos a toalha sem muita luta contra os direitos e liberdades que nossos pais e avós lutaram tanto para conquistar.

Além disso, conforme os mandatos vacinais são introduzidos em todo o mundo para trabalhadores em muitas indústrias e ambientes, a maioria está cumprindo não porque eles próprios necessariamente acreditam que precisam da vacina contra o coronavírus, mas apenas porque querem recuperar suas liberdades e manter seus empregos para que possam alimentar suas famílias. As elites políticas que impõem esses mandatos sabem e fazem uso inteligente disso, muitas vezes mesmo com as melhores intenções, acreditando que isso é necessário para lidar com a crise em questão.

Propaganda totalitária

A ferramenta mais importante e definitiva usada pelos movimentos totalitários na sociedade não-totalitária é estabelecer o controle real das massas, conquistando-as através do uso da propaganda: "Somente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda". Como explica Hannah Arendt, tanto o medo quanto a ciência são amplamente usados ​​para lubrificar a máquina de propaganda. O medo é sempre propagado como sendo dirigido a alguém ou algo externo que represente uma ameaça real ou percebida para a sociedade ou o indivíduo. Mas há outro elemento ainda mais sinistro que a propaganda totalitária historicamente usa para persuadir as massas a seguirem sua liderança por meio do medo: "o uso de insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não derem ouvidos aos seus ensinamentos (..)", ao mesmo tempo que afirma o caráter estritamente científico e de utilidade pública do seu argumento de que essas medidas são necessárias. Tanto a instrumentalização deliberada do medo, quanto a constante referência em "seguir a ciência" por atores políticos e meios de comunicação de massa na crise do Covid tem sido extremamente bem-sucedidas como ferramentas de propaganda.

Hannah Arendt admite abertamente que o uso da ciência como uma ferramenta eficaz da política em geral tem sido amplamente difundido e nem sempre em um mau sentido. É claro que este também é o caso no que diz respeito à crise do Covid. Mesmo assim, ela continua, a obsessão pela ciência tem caracterizado cada vez mais o mundo ocidental desde o século 16. Ela vê o armamento totalitário da ciência, citando o filósofo alemão Eric Voegelin, como o estágio final em um processo social onde "a ciência [tornou-se] um ídolo que, num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza do homem".

A ciência é empregada para fornecer os argumentos para a justificação do medo social e para a razoabilidade das medidas de longo alcance impostas para "confrontar" e "exterminar" o perigo externo. Arendt: "O cientificismo da propaganda totalitária é caracterizado por sua insistência quase exclusiva na profecia "científica", (..)"

Quantas dessas profecias não ouvimos desde o início de 2020 e que não se cumpriram? Não é de todo relevante, continua Arendt, se essas "profecias" estejam baseadas na boa ou na má ciência, uma vez que os líderes das massas têm como foco principal ajustar a realidade às suas próprias interpretações e, quando julgado necessário, mentiras, pelo qual sua propaganda "exibe extremo desprezo pelos fatos em si."

Eles não acreditam em nada que esteja relacionado à experiência pessoal ou ao que é visível, mas apenas no que imaginam, no que dizem seus próprios modelos estatísticos e no sistema ideologicamente consistente que construíram em torno disso. Organização e obstinação é o que o movimento totalitário almeja para obter o controle total, pelo qual o conteúdo da propaganda (seja fato ou ficção, ou ambos) torna-se um elemento intocável do movimento e onde a razão objetiva ou muito menos o discurso público não desempenham mais nenhum papel.

Até agora, um debate público respeitoso e um discurso científico robusto não foram possíveis quando se trata da melhor maneira de responder à pandemia causada pelo coronavírus. As elites estão bem cientes disso e aproveitam-na para divulgar sua agenda que, em vez disso, entregam o discurso de consistência radical que as massas almejam em tempos de crise existencial, pois isso (inicialmente) lhes dão uma sensação de segurança e previsibilidade. No entanto, é aqui também que reside a grande fraqueza da propaganda totalitária, uma vez que, em última análise, "(..) não pode satisfazer esse anseio das massas por um mundo completamente coerente, compreensível e previsível sem entrar em sério conflito com o bom senso".

Hoje vemos isso exacerbado, como já mencionei acima, por meio de uma compreensão e uso fundamentalmente falhos da ciência pelos poderes constituídos. O ex-professor da Harvard Medical School Martin Kulldorff, um conhecido epidemiologista e bioestatístico especializado em surtos de doenças infecciosas e segurança de vacinas, observa o que é a aplicação correta da ciência e como isso está faltando na narrativa atual: "A ciência é sobre desacordo racional, o questionamento e teste da ortodoxia e a busca constante pela verdade."

Estamos agora muito distantes desse conceito em um contexto público em que a ciência foi politicamente transformada em uma fábrica de verdades que não tolera divergências, mesmo que o ponto de vista alternativo apenas delineie as inúmeras inconsistências e falsidades que fazem parte da narrativa política e da mídia. Porém, no momento em que, aponta Arendt, esse erro do sistema torna-se claro para os participantes do movimento totalitário e sua derrota é iminente, eles deixarão de acreditar em seu futuro e, de um dia para o outro, desistem daquilo pelo qual estavam dispostos a dar tudo no dia anterior.

Um exemplo notável desse abandono repentino de um sistema totalitário é a maneira como a maioria do aparato governamental na Europa Central e Oriental entre 1989 e 1991 deixou de ser comunistas de carreira linha-dura para se tornar democratas liberais entusiastas. Eles simplesmente abandonaram o sistema do qual fizeram parte por muitos anos e encontraram um sistema alternativo que as circunstâncias permitiam que então adotassem. Portanto, como sabemos pelo amontoado de escombros da história, todo esforço para o totalitarismo tem uma data de validade. A versão atual também falhará.

II. Desumanização em ação

Durante os meus mais de 30 anos de estudo e ensino de história europeia e as fontes do direito e da justiça, surgiu um padrão sobre o qual já publiquei em 2014 com o título "Human rights, history and anthropology: reorienting the debate" (3). Nesse artigo, descrevi o processo de "desumanização em 5 etapas" e como essas violações dos direitos humanos geralmente não são perpetradas por 'monstros', mas em grande parte por homens e mulheres comuns - ajudados pelas massas ideologizadas passivas - que estão convencidos de que o que estão fazendo ou participando é bom e necessário, ou pelo menos justificável.

Desde março de 2020, temos testemunhado o desdobramento global de uma grave crise de saúde, provocando a pressão sem precedentes do governo, da mídia e da sociedade sobre populações inteiras para aquiescer a medidas de longo alcance e principalmente inconstitucionais que limitam as liberdades das pessoas e, em muitos casos, por meio de ameaças e pressões indevida que violam sua integridade corporal. Durante este tempo, tornou-se cada vez mais claro que existem certas tendências hoje visíveis que mostram algumas semelhanças com o tipo de medidas desumanizantes empregadas como regra por movimentos e regimes totalitários.

Bloqueios sem fim, quarentenas aplicadas pela polícia, restrições de viagens, mandatos vacinais, a supressão de dados científicos e debates, censura em grande escala e a implacável degradação e humilhação pública de vozes críticas são todos exemplos de medidas desumanizantes que não deveriam ter lugar em um sistema de democracia e Estado de direito. Vemos também o processo de relegar cada vez mais uma determinada parte da população para as periferias, identificando-as como irresponsáveis e indesejáveis pelo "risco" que representam para os outros, fazendo com que a sociedade os exclua gradativamente. O Presidente dos Estados Unidos expressou claramente o que isso significa em um importante discurso político transmitido ao vivo pela televisão:

Temos sido pacientes, mas nossa paciência está se esgotando. E sua recusa custou a todos nós. Então, por favor, faça a coisa certa. Mas simplesmente não aceite isso de mim; ouça as vozes de americanos não vacinados que estão deitados em camas de hospital, dando suas últimas respirações, dizendo: "Se eu tivesse sido vacinado". "Se apenas." - Presidente Joe Biden, 9 de setembro de 2021.

Os cinco passos

Aqueles traficantes de influência da retórica política atual, que coloca os "vacinados" contra os "não vacinados, ou vice-versa, estão trilhando um caminho muito perigoso de demagogia que nunca terminou bem na história. Slavenka Drakulic, em sua análise do que levou ao conflito étnico iugoslavo de 1991 a 1999, observa: "(..) com o tempo, esses 'Outros' são despojados de todas as suas características individuais. Eles não são mais conhecidos ou profissionais com nomes, hábitos, aparências e personalidades particulares; em vez disso, eles são membros do grupo inimigo. Quando uma pessoa é reduzida a uma abstração dessa forma, fica-se livre para odiá-la porque o obstáculo moral já foi abolido ".

Ao olharmos para a história, vemos que movimentos totalitários em algum momento levaram a regimes totalitários com suas campanhas de perseguição e segregação controladas pelo Estado. É isso o que acontece.

O primeiro passo da desumanização é a criação e instrumentalização política do medo e a ansiedade permanente resultante entre a população: o medo pela própria vida e o medo por um grupo específico da sociedade que é considerado uma ameaça são constantemente alimentados.

O medo pela própria vida é, obviamente, uma resposta compreensível e inteiramente justificável a um novo vírus potencialmente perigoso. Ninguém gostaria de ficar doente ou morrer desnecessariamente. Não queremos pegar um vírus nocivo se ele puder ser evitado. No entanto, uma vez que esse medo está sendo instrumentalizado por instituições (estatais) e meios de comunicação para ajudá-los a alcançar certos objetivos como, por exemplo, o governo austríaco que teve que admitir o que fez em março de 2020 quando quis convencer a população da necessidade de um lockdown e o medo se tornou uma arma potente.

Novamente, Hannah Arendt traz sua análise afiada ao observar: "O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, através do Estado e de uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente.. "

Em seu discurso de 9 de setembro de 2021, o presidente Biden instrumentaliza para fins políticos o medo humano normal pelo vírus potencialmente fatal e continua a expandi-lo usando o medo das "pessoas não vacinadas", sugerindo que elas são, por definição, responsáveis não apenas por suas próprias mortes, mas potencialmente para a sua também, porque elas estão "fazendo uso desnecessário" de leitos de UTI. Desta forma, estabeleceu-se uma nova suspeita e ansiedade em torno de um grupo específico de pessoas na sociedade pelo que elas podem fazer a você e ao seu grupo.

A criação de medo em relação a esse grupo específico, portanto, os transforma em bodes expiatórios facilmente identificáveis para o problema específico que a sociedade está enfrentando atualmente, independentemente dos fatos. Nasceu uma ideologia de discriminação publicamente justificada com base em uma emoção presente nos seres humanos individuais dentro da sociedade. Foi exatamente assim que começaram os movimentos totalitários que se transformaram em regimes totalitários na história europeia recente. Mesmo que não seja comparável aos níveis de violência e exclusão dos regimes totalitários do século 20, estamos hoje vendo um governo baseado no medo e numa propaganda midiática que justifica a exclusão de pessoas. Primeiro os "assintomáticos", depois os "sem máscaras" e agora os "não vacinados" estão sendo apresentados e tratados como um perigo e um fardo para o resto da sociedade. Quantas vezes não ouvimos dos líderes políticos durante os últimos meses que estamos vivendo a "pandemia dos não vacinados" e que os hospitais estão cheios deles:

"São quase 80 milhões de americanos não vacinados. E em um país tão grande como o nosso, isso representa uma minoria de 25%. Esses 25 por cento podem causar muitos danos - e eles são. Os não vacinados superlotam nossos hospitais, estão invadindo os prontos-socorros e unidades de terapia intensiva, não deixando espaço para alguém com ataque cardíaco, ou pancreatite ou câncer." - Presidente Joe Biden, 9 de setembro de 2021.

O segundo passo da desumanização é a exclusão branda: o grupo transformado em bode expiatório é excluído de certas - embora não todas - partes da sociedade. Eles ainda são considerados parte dessa sociedade, mas seu status foi rebaixado. Eles estão apenas sendo tolerados e, ao mesmo tempo, repreendidos em público por serem ou agirem de forma diferente. Também são implementados sistemas que permitem às autoridades e, portanto, ao público em geral, identificar facilmente quem são esses "outros". Entre com o "Passaporte Sanitário" ou o QR code. Em muitos países ocidentais, essa acusação está acontecendo neste momento, especialmente para aqueles não vacinados contra o vírus SARS-CoV-2, independentemente das considerações constitucionais que as protejam ou das razões médicas pelas quais os indivíduos possam decidir não receber esta vacina específica.

Por exemplo, em 5 de novembro de 2021, a Áustria foi o primeiro país da Europa a introduzir restrições altamente discriminatórias para os "não vacinados". Esses cidadãos foram impedidos de participar da vida social e só podem ir ao trabalho, fazer compras, ir à igreja, dar um passeio ou atender a "emergências" claramente definidas. Nova Zelândia e Austrália têm limitações semelhantes. Os exemplos são múltiplos em todo o mundo onde, sem provar a vacinação contra o Covid, as pessoas estão perdendo seus empregos e sendo impedidas de entrar em uma série de estabelecimentos, lojas e até mesmo igrejas. Há também um número crescente de países que proíbem pessoas de embarcar em aviões sem certificado de vacinação, ou mesmo as proíbem explicitamente de receber amigos para jantar em casa, como na Austrália:

"A mensagem é que, se você quer fazer uma refeição com os amigos e receber as pessoas em sua casa, você tem que se vacinar." - Gladys Berejiklian primeira-ministra do estado de Nova Gales do Sul, Austrália, 27 de setembro de 2021

A terceira etapa da desumanização, que ocorre principalmente em paralelo com a segunda etapa, é executada por meio de justificação documentada da exclusão: pesquisas acadêmicas, opiniões de especialistas e estudos científicos amplamente divulgados através de vasta cobertura da mídia são usados para sustentar a propaganda do medo e a subsequente exclusão de um grupo específico; para 'explicar' ou 'fornecer evidências' porque a exclusão é necessária para o 'bem da sociedade' e para que todos 'fiquem seguros'. Hannah Arendt observa que "A forte ênfase que a propaganda totalitária dá à natureza "científica" das suas afirmações tem sido comparada a certas técnicas publicitárias igualmente dirigidas às massas. (..) Tanto no caso da publicidade comercial quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto do poder. A obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações "científicas" desaparece assim que eles assumem o poder. "

A ressalva interessante aqui é que a ciência está, obviamente, sendo usada de forma tendenciosa, apenas apresentando aqueles estudos que se enquadram na narrativa oficial e sem sequer em igual número de estudos - não importa o quão renomados sejam seus autores - que forneçam percepções alternativas e conclusões que possam contribuir para um debate construtivo e melhores soluções. Como mencionado antes, aqui a ciência se politiza como uma ferramenta para promover o que os líderes do movimento totalitário decidiram que deveria ser a verdade e as medidas e ações baseadas nessa versão da verdade. Pontos de vista alternativos são simplesmente censurados, pois vemos empresas como YouTube, Twitter e Facebook se engajarem em uma escala sem precedentes.

Nunca viu-se, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tantos acadêmicos, cientistas e médicos renomados e aclamados, incluindo ganhadores e indicados ao Prêmio Nobel, que foram silenciados, desconvidados para palestras e demitidos de seus cargos apenas porque não apóiam a linha oficial ou "correta". Eles simplesmente desejam um discurso público robusto sobre a melhor forma de lidar com o assunto em questão e, assim, se engajar em uma busca comum pela verdade. Estamos naquele ponto, já demonstrado ao longo da história, em que a ideologia atual foi agora formalmente consagrada e se tornou a tendência dominante.

A quarta etapa da desumanização é a exclusão explícita: o grupo que agora está "comprovado" de ser a causa dos problemas da sociedade e o inconveniente atual é em seguida excluído da sociedade civil como um todo e e se torna sem direitos. Eles não têm mais voz na sociedade porque são considerados como não mais fazendo parte dela. Na versão extrema disso, eles não têm mais direito à proteção de seus direitos fundamentais quando se trata de medidas voltadas ao Covid impostas por governos em todo o mundo e em graus variados, que em alguns lugares já estamos vendo desenvolvimentos na direção deste quarto estágio.

Mesmo que em escopo e severidade tais medidas não possam ser comparadas àquelas impostas por regimes totalitários do passado e do presente, elas mostram claramente tendências totalitárias preocupantes que, quando não controladas, podem eventualmente se transformar em algo muito pior. Em Melbourne, Austrália, por exemplo, um eufemisticamente chamado "Centro para Resiliência Nacional" será concluído em breve (como um dos vários centros), que atuará como uma instalação permanente onde as pessoas serão trancadas à força em quarentena, por exemplo, ao voltarem de uma viagem ao exterior. As regras e regulamentos para a vida em uma instalação de internamento já existente no estado do Território do Norte da Austrália tornam a compreensão orwelliana assustadora:

"A Direção da Autoridade de Saúde 52 de 2021 estabelece o que uma pessoa deve fazer quando em quarentena no Centro para Resiliência Nacional e na Instalação de Quarentena de Alice Springs. Essa direção é lei - cada pessoa em quarentena deve fazer o que a Direção diz. Se uma pessoa não seguir as instruções, a Polícia do Território do Norte pode emitir um Aviso de Infração com uma penalidade financeira". 

O quinto e último passo da desumanização é o extermínio, social ou físico. O grupo excluído é expulso à força da sociedade, seja pela impossibilidade de qualquer participação na sociedade, seja pelo seu banimento para acampamentos, guetos, prisões e instalações médicas. Nas formas mais extremas de regimes totalitários que vimos sob o comunismo e o nazismo, mas também o nacionalismo étnico durante as guerras na ex-Iugoslávia de 1991-1999; isso então leva as pessoas a serem exterminadas fisicamente ou pelo menos tratadas como aquelas que "não são mais humanas". Isso se torna facilmente possível porque ninguém mais fala por eles, invisíveis como se tornaram. Eles perderam seu lugar na sociedade política e com isso qualquer chance de reivindicar seus direitos como seres humanos. Eles deixaram de fazer parte da humanidade no que diz respeito aos totalitários.

Felizmente, no Ocidente, não alcançamos esse estágio final de totalitarismo e a resultante desumanização. No entanto, Hannah Arendt dá um aviso severo de que não devemos contar com a democracia por si só como sendo um baluarte suficiente para impedir este quinto estágio:

"Uma concepção da lei que identifica o direito com a noção do que é bom - para o indivíduo, ou para a família, ou para o povo, ou para a maioria - toma-se inevitável quando as medidas absolutas e transcendentais da religião ou da lei da natureza perdem a sua autoridade. E essa situação de forma alguma se resolverá pelo fato de ser a humanidade a unidade à qual se aplica o que é "bom". Pois é perfeitamente concebível, e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática - isto é, por decisão da maioria -, à conclusão de que, para a humanidade como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma."

III Conclusão: como nos libertamos?

A história nos dá uma orientação poderosa sobre como podemos nos livrar do jugo do totalitarismo em qualquer estágio ou forma em que ele se apresente; inclusive sob a forma ideológica atual que a maioria nem percebe que está acontecendo. Podemos realmente impedir o retrocesso da liberdade e o início da desumanização. Nas palavras de George Orwell "A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Quando se concorda nisto o resto vem por si". Vivemos em uma época em que exatamente essa liberdade está sob grave ameaça como resultado do totalitarismo ideológico, algo que tentei ilustrar por meio de como as sociedades ocidentais lidam com a crise do Covid, onde os fatos muitas vezes parecem não importar, preferindo-se consagrar a mais recente ortodoxia ideológica sistêmica. O melhor exemplo de como a liberdade pode ser recuperada é como os povos da Europa Central e Oriental acabaram com o reinado totalitário do comunismo em seus países a partir de 1989.

Foi seu longo processo de redescoberta da dignidade humana e sua desobediência civil não violenta, mas insistente, que derrubou os regimes da elite comunista e seus aliados da máfia, expondo a falsidade de sua propaganda e a injustiça de suas políticas. Eles sabiam que a verdade é uma meta a atingir, não um objeto a reivindicar e, portanto, requer humildade e diálogo respeitoso. Eles entenderam que uma sociedade só pode ser livre, saudável e próspera quando nenhum ser humano é excluído e quando há sempre a genuína disposição e abertura para um discurso público robusto, para ouvir e compreender o outro, por mais diferente que seja sua opinião ou atitude perante a vida

Eles finalmente assumiram total responsabilidade por suas próprias vidas e por aqueles ao seu redor, superando seu medo, passividade e vitimização, aprendendo mais uma vez a pensar por si mesmos e enfrentando um Estado auxiliado por seus promotores, que havia esquecido seu único propósito: servir e proteger cada um dos seus cidadãos, e não apenas aqueles que escolhe.

Todos os esforços totalitários sempre terminam na lixeira da história. Este não será exceção.

Por: Christiaan W.J.M. Alting von Geusau (4)

Original em inglês: Brownstone


Notas:

(1) - Ryszard Legutko em seu livro The Demon in Democracy: Totalitarian Temptations in Free Societies (O Demônio na Democracia: Tentações Totalitárias nas Sociedades Livres) mostra metodicamente as surpreendentes porém substanciais semelhanças entre o comunismo estilo soviético e o liberalismo moderno, conforme retratado pela Suécia, União Europeia e Barack Obama.

(2) - Pensamento de grupo é um tipo de pensamento exibido pelos membros de um grupo que tentam minimizar conflitos e chegar ao consenso sem testar, analisar e avaliar criticamente as idéias.

 (3) - Em uma tradução livre: "Direitos humanos, história e antropologia: reorientando o debate"

(4) - Christiaan Alting von Geusau é formado em direito pela Universidade de Leiden (Holanda) e pela Universidade de Heidelberg (Alemanha). Obteve com distinção o doutorado em filosofia do direito pela Universidade de Viena (Áustria), escrevendo a sua dissertação sobre "Dignidade Humana e o Direito na Europa do pós-guerra", publicada internacionalmente em 2013. É Presidente e Reitor do ITI Universidade Católica da Áustria, onde também atua como Professor de Direito e Educação. Ele tem um cargo de professor honorário na Universidade San Ignacio de Loyola em Lima, Peru e é presidente da Rede Internacional de Legisladores Católicos (ICLN). As opiniões expressas neste ensaio não são necessariamente as das organizações que ele representa e, portanto, foram escritas a título pessoal.