Rancor De Si Mesmo Como Barreira À Vocação

24/11/2023

A tentação de nos definirmos por nossos pecados, e especialmente por nossos piores pecados, não passa disso: uma tentação.

O perdão é um tema difícil para a maioria de nós, e geralmente se concentra no perdão daqueles que nos prejudicaram, seja por maldade ou negligência. Normalmente, não pensamos muito nos outros tipos de perdão.

Cada um de nós conhece o peso de nossos próprios pecados, pois o arrependimento pode ser uma dor lancinante. Que tal nos perdoarmos por nossas ofensas passadas? Quão necessário isso pode ser? Se tentamos fazer as pazes com aqueles a quem prejudicamos e levamos o incidente a Deus por meio da confissão sacramental, há algo mais a ser feito?

Algumas pessoas tentam justificar uma posição de aversão, de rancor de si mesmas por toda a vida, muito tempo depois de terem sido perdoadas por Deus e até mesmo pelo próximo. Tal postura não pode ser considerada como cristã, pois negaria a mensagem cristã de redenção e renovação, que está no cerne do sacrifício de Cristo.

Ao adequar nosso entendimento à doutrina, devemos admitir que não podemos nos salvar, para depois aceitar que Ele nos salvou. Se alguém quiser sair das trevas e entrar na luz, não pode se ver como quem traz em si as sombras. Ao contrário, ela ganha o potencial de ser um instrumento dessa luz, um exemplo do poder salvador de Cristo e um reflexo de Jesus no mundo. Todos nós temos o potencial de refratar Sua luz de forma diferente, mas, mesmo assim, o mundo se torna mais brilhante quando o fazemos.

A tentação de nos definirmos por nossos pecados, e especialmente por nossos piores pecados, é apenas isso: uma tentação. Essa é a razão pela qual Satanás é tão frequentemente chamado de O Acusador. Não somos definidos por nossos pecados, mas pelo batismo que nos tornou filhos de Deus. Se nos recusarmos a perdoar a nós mesmos, então nos tornaremos menos capazes de servir a Deus como Ele deseja ser servido. Por exemplo, como podemos "amar o próximo como a nós mesmos" se não nos amamos como filhos de Deus ou, pior ainda, se nos odiamos?

Um dos erros de Martinho Lutero foi proclamar: "Amar a Deus é ao mesmo tempo odiar a si mesmo e não conhecer nada além de Deus". Isso é uma perversão do conceito de autonegação, e é um conceito que muitas pessoas defendem, independentemente de conhecerem sua origem. Embora devamos odiar nosso pecado e nos engajar na mortificação espiritual por meio de jejuns e penitências, para que possamos nos unir melhor a Deus, isso não é o mesmo que odiar a si mesmo. Odiar a si mesmo é negar o valor e a dignidade únicos de cada pessoa - negando o seu próprio valor. Não se pode servir melhor ao Criador desprezando aquilo que Ele criou. É uma visão de mundo incongruente.

Se não perdoarmos a nós mesmos, estaremos implicitamente negando o mérito do sacrifício final e completo de Cristo. Dizemos: "Meu pecado é maior do que Sua capacidade de me redimir". É a aceitação de uma espécie de orgulho dissimulado, mas prejudicial, que, assim, paira próximo ao desespero.

Podemos olhar para os santos, de São Paulo a Santo Inácio de Loyola e muitos outros, e ver vidas de pecado que foram reformadas pela conversão deles. Se tornaram novos homens por meio de um abraço incomparável da Cruz, de tal forma que hoje são venerados pelos fiéis. No entanto, parece ser algo bem diferente não apenas seguir os santos na tentativa de viver de forma contrita, mas segui-los na aceitação da conversão.

Como seria se colocar no lugar de São Paulo, por exemplo, e saber que você perseguiu os cristãos, seguidores do verdadeiro Deus? Que peso insuportável na consciência, depois de perceber que os cristãos estavam certos e eram justos ao resistir à opressão dele. À primeira vista, pareceria impossível viver depois disso.

Como você conseguiria se olhar no espelho ou sair da cama pela manhã? Creio que essa seja a pergunta errada. Nossa pergunta não pode ser "como", mas "por que". Foi somente com um "por que" adequado que São Paulo pôde continuar a viver sua conversão. O amor de Cristo é uma resposta ao "porquê". O perdão de Cristo deve ser suficiente para nós. E sem essa aceitação, São Paulo nunca teria cumprido seu dever. Ele não teria sido a testemunha para os gentios como foi, nem o escritor mais prolífico do Novo Testamento.

Tivesse ele recusado seu dever, não abraçando o perdão de Cristo, os impactos dessa atitude, ao longo dos tempos, estariam muito além de sua compreensão em seu tempo, como é o caso de tantos santos que tiveram histórias de redenção e a abraçaram. Em muitos desses relatos, é um passado que Deus usou, transformou e redimiu para produzir pessoas de impacto e cura entre Seus fiéis. Se São Paulo tivesse escolhido o caminho da autodepreciação, ele teria rejeitado o plano que Deus tinha para ele. Nossa cooperação com a graça deve abranger o reconhecimento do poder de Deus para transformar e redimir.

Santo Tomás de Aquino e Aristóteles nos dizem que a magnanimidade é "o ornato de todas as virtudes". É a aspiração do espírito de alguém a grandes coisas, extensio animi ad magna. Nas palavras de Josef Pieper (1), "é magnânimo quem exige grandes coisas do seu coração e se torna digno delas". Como alguém consegue abraçar essa virtude - buscar o que é grandioso, para glorificar o Senhor - se estiver atolado em rancor de si mesmo? Não consegue.

Devemos orientar nossa vida para viver nossas conversões, aceitar o dom do perdão e oferecer a Deus o único dom que podemos dar - o de nossas vidas em serviço, indo além de nossa dor e de nosso passado, para nos tornarmos as pessoas que Ele deseja que sejamos.

Autora: Sarah Cain

Original em inglês: Crisis Magazine


Nota:

(1) - Josef Pieper (4 de maio de 1904 - 6 de novembro de 1997) foi um filósofo católico alemão e uma figura importante no ressurgimento do interesse pelo pensamento de Santo Tomás de Aquino na filosofia do início e meados do século XX.