Qual É O Gênero Literário Dos Evangelhos?

Muitas pessoas querem relegá-los ao reino da ficção ou da mitologia.
Muitas pessoas veem os Evangelhos cristãos do Novo Testamento como meros contos de fadas. Essa ideia é frequentemente associada à nossa compreensão moderna da biografia, com sua visão abrangente, cronologia perfeita e ausência de genealogia.
No entanto, essas ideias precisam ser abandonadas ao abordar os Evangelhos.
O livro de Brant Pitre, Em defesa do Cristo [ou O caso de Jesus], e a obra de Pe. Richard Burridge, What Are the Gospels? A Comparison with Greco-Roman Biography, defendem a tese de que os quatro Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João estão, de fato, na forma literária das biografias antigas.
Dois exemplos são as biografias do historiador grego Plutarco, escritas entre 90 e 100 d.C., e as biografias do historiador romano Suetônio, escritas em 120 d.C., ambas com paralelos com os Evangelhos. Este artigo comparará a maneira como a vida de uma figura histórica da antiguidade, como Alexandre, o Grande ou Nero, era narrada com a forma como os Evangelhos narram a vida de Jesus.
Ministério Público
Uma biografia moderna geralmente abrange uma vasta quantidade de material, incluindo detalhes minuciosos da aparência física do biografado e de suas experiências no ensino médio. Os pormenores de sua infância, vida adulta e velhice são abordados.
Com isso em mente, muitos não considerariam os Evangelhos como biografias. Por exemplo, dos vinte e oito capítulos do Evangelho de Mateus, vinte e três abordam o ministério público de Jesus. Dos trinta e três anos que Jesus viveu na Terra, apenas três são o foco principal, incluindo episódios como curas e exorcismos.
Por quê? Porque o foco principal de uma biografia antiga era o ministério público do indivíduo em questão. Ela também abordava o nascimento, a infância e a morte, mas, como observa Brant Pitre,"a estrutura geral de uma biografia antiga geralmente pode ser dividida em três partes principais - o nascimento, a vida pública e a morte da pessoa - com a maior parte do livro sendo dedicada à carreira pública do sujeito. … Por exemplo, a Vida de Timoleão, o estadista grego, escrita por Plutarco, mergulha diretamente na história de seus atos públicos" (pag. 65-66). É por isso que os Evangelhos se concentram substancialmente nos feitos de Jesus que eram de conhecimento público, e não em sua vida oculta de trinta anos em Nazaré.
Curto e Direto
As biografias modernas têm centenas de páginas, então como os Evangelhos, que podem ser lidos em apenas algumas horas, podem ser considerados biografias? Bem, as biografias greco-romanas antigas tinham em média cerca de dez a vinte mil palavras — aproximadamente o que caberia no comprimento de um pergaminho antigo.
Os antigos não tinham uma quantidade ilimitada de papel para formar um livro, como as pessoas modernas têm hoje. Eles tinham pergaminhos. Esses pergaminhos eram feitos de folhas ou peles (folhas de papiro e pele de carneiro) e, como eram muito caros de se fabricar, não tinham muito espaço para trabalhar. É por isso que eles cobriam apenas os feitos mais notáveis de um indivíduo. Os quatro Evangelhos se encaixam nesse gênero simplesmente com base em seu tamanho.
Não Cronológico
Alguns céticos afirmam que os Evangelhos se contradizem e não podem ser considerados biografias. Isso se deve à perspectiva que adotamos hoje, que classifica os documentos na categoria de "biografia" com base na cronologia.
Mas as biografias antigas não se preocupavam tanto quanto nós hoje em contar uma história do começo ao fim. Por exemplo, Suetônio afirma em sua biografia de César Augusto: "Exposto essa espécie de resumo de sua vida, trararei de suas partes isolada e não cronologicamente. por itens, para que possam ser mais distintamente enunciadas e conhecidas" (A Vida e os Feitos do Divino Augusto, IX).
Da mesma forma, os Evangelhos nem sempre se preocupam com a ordem cronológica. O Evangelho de João apresenta Jesus virando mesas no início de Sua vida (João 2:14), enquanto o Evangelho de Lucas apresenta Jesus fazendo isso no final de Sua vida (Lucas 19,45). Essas diferenças não implicam necessariamente que os evangelistas erraram, pois eles podem ter se concentrado em temas específicos. (Ou Jesus pode ter virado as mesas duas vezes.) As biografias modernas se concentram na exatidão, mas as biografias antigas, como os Evangelhos, nem sempre seguiam esse padrão.
O Ponto Principal
A questão das contradições nos Evangelhos volta a surgir no que diz respeito às palavras de Jesus.
Enquanto a objeção anterior se referia à ordem dos episódios da vida de Cristo, esta objeção analisa o conteúdo interno desses episódios. Por exemplo, o Evangelho de Mateus (20,29-34) diz que Jesus curou dois cegos, e o Evangelho de Marcos (10,46-52) diz que Jesus curou um cego.
Embora as obras históricas modernas se preocupem com a precisão e a exatidão palavra por palavra — "Eram dois cegos ou um só?!" —, as obras históricas antigas, como as dos evangelistas, não necessariamente seguiam esse padrão. Às vezes, os textos da antiguidade procuravam transmitir apenas o sentido geral do que as pessoas disseram, pois as aspas não eram usadas. Considere o historiador antigo Tucídides:
"Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades quando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando já estavam engajados nela, foi difícil recordar com precisão rigorosa os que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por várias fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os respectivos assuntos e os sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito" (História da Guerra do Peloponeso 1.22).
Tucídides utilizou diversas fontes confiáveis (como o Evangelho de Lucas — veja Lucas 1,1-3) e registrou apenas o "sentido geral" do que foi dito. Os Evangelhos fazem o mesmo, muitas vezes narrando os mesmos eventos, mas com palavras diferentes. Isso ocorre porque, em obras antigas, apenas a essência dos fatos precisa ser registrada.
Genealogia
As biografias modernas geralmente não dão a mínima para genealogia. Uma biografia do ex-presidente americano Barack Obama não vai listar quatorze gerações da família Obama. No entanto, os Evangelhos fazem isso, o que parece implicar que não são biografias no sentido moderno.
Os Evangelhos de Mateus (1,1) e Lucas (3,23) descrevem a longa linhagem de Jesus, desde o Rei Davi e desde Adão, respectivamente. Eles sugerem que Jesus tem sangue real, descendente dos reis de Israel.
Esta é, na verdade, uma característica comum nas biografias greco-romanas, como se pode ver em Josefo. Ele afirma em sua antiga biografia: "Como a minha origem remonta a uma longa série de antepassados de família sacerdotal, … do lado de minha mãe, tenho reis entre meus antepassados. … Simão, cognominado Psello, avô de meu bisavô" (Vida de Flávio Josefo). Josefo não pertencia a uma família de camponeses pobres. Seu pai e mãe eram descendentes de sacerdotes, reis e rainhas. A linhagem da figura histórica é frequentemente uma característica das biografias antigas.
Mais conexões entre as biografias greco-romanas antigas e os Evangelhos poderiam ser feitas, como a forma como fornecem informações históricas e seus apelos a testemunhas oculares, mas basta dizer que os Evangelhos se encaixam nesse gênero. Não são mitos pagãos sobre Zeus ou contos de fadas do tipo "era uma vez". Não são como biografias modernas, onde cada detalhe é registrado palavra por palavra e em ordem cronológica. São biografias antigas.
Tentar encaixar os Evangelhos no gênero das biografias modernas ou das mitologias é cometer um grande erro. No entanto, infelizmente, muitas pessoas tentaram justamente isso.
Autor: Luke Lancaster
Original em inglês: Catholic Answers