Os Limites Do Perdão

Cada ano da história decadente da humanidade testemunha inúmeros pecados, grandes e pequenos. Quando são cometidos contra nós, levanta-se a questão do perdão, já que Jesus deixou claro que devemos estar dispostos a perdoar.
Quando Erika Kirk perdoou esta semana o assassino de seu marido, Charlie Kirk, sua ação suscitou muitas perguntas sobre o que Nosso Senhor espera de nós quando se trata de perdão.
Da mesma forma como nos dias imediatamente posteriores ao 11 de setembro, pessoas ligavam para o Catholic Answers Live confusas porque seus padres lhes haviam dito que os EUA não deveriam retaliar contra os terroristas devido ao dever cristão do perdão.
Após o escândalo sexual envolvendo padres americanos ter vindo a público em 2002, muitos — mesmo aqueles que não haviam sido abusados — declaravam veementemente que "nunca poderiam perdoar" os padres abusadores pelo que haviam feito.
Há algo de errado com ambas as visões sobre o perdão. A segunda reflete a tendência muito humana de não perdoar, independentemente das circunstâncias. É a atitude contra a qual os ensinamentos de Cristo sobre o perdão se dirigem.
A primeira atitude reflete o extremo oposto, insistindo em todas as formas de perdão, independentemente das circunstâncias. Embora essa atitude de hiperperdão procure se disfarçar nos ensinamentos de Cristo, na realidade, ela vai muito além do que Cristo nos pede para fazer e até mesmo do que o próprio Deus faz.
A injunção mais famosa de Cristo a respeito do perdão encontra-se no Pai Nosso: "E perdoa-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores " (Mt 6,12 — e em grego, a palavra é 'dívidas', embora a tradução comum em português use a palavra 'ofensas').
Só para garantir que entendemos a mensagem, Jesus destaca esta petição com um comentário especial: "Pois, se perdoardes aos homens os seus delitos, também o vosso Pai celeste vos perdoará; mas se não perdoardes aos homens, o vosso Pai também não perdoará os vossos delitos" (Mt 6, 14-15).
Então é isso. Você precisa perdoar se quiser ser perdoado.
Perdão e Sentimentos
Isso levanta uma questão urgente: o que significa perdoar alguém? Essa é uma questão delicada, porque há certas coisas que geralmente são chamadas de perdão, mas que são difíceis ou impossíveis para nós de fazer.
Por exemplo, muitas vezes pensamos em perdoar as pessoas em termos de não sentir mais raiva delas, de ter sentimentos afetuosos e positivos em relação a elas. Quando dizemos às pessoas que as perdoamos pelo que fizeram, muitas vezes sorrimos e tentamos transmitir a impressão de que temos sentimentos afetuosos, mesmo que ainda possamos sentir raiva.
Como nosso perdão diante de Deus depende da nossa disposição de perdoar os outros, uma pessoa com uma compreensão do perdão baseada nos sentimentos poderia concluir que não será perdoada por Deus até que tenha sentimentos positivos em relação a todas as pessoas do mundo. Isso a levaria a tentar fabricar sentimentos positivos pelos outros. Quando esses sentimentos não surgem, isso pode deixá-la com medo de sua salvação, emocionalmente seca, frustrada ou até mesmo com raiva de Deus por tornar sua salvação dependente do tipo de sentimentos que ela tem, quando ela não tem controle total sobre eles. Esse caminho leva ao desespero.
Mas a visão do perdão baseada nos sentimentos é errada precisamente pela razão que os dois cenários anteriores mostram: não temos controle total sobre nossos sentimentos.
Claro, podemos influenciá-los. Se um determinado assunto nos deixa com raiva, podemos tentar pensar em outra coisa. Podemos nos perguntar: "Foi realmente tão ruim assim?" ou "O que de bom pode resultar disso?" ou "O que posso aprender com isso?" para colocar o assunto em perspectiva.
Mas esses esforços contornam a própria raiva. Eles tentam influenciá-la de fora. Não há como alcançarmos nosso interior e apertarmos um botão que faça a raiva desaparecer e ser substituída por sentimentos positivos.
Não somos responsáveis pelo que não podemos controlar. Como temos apenas influência indireta sobre nossos sentimentos, podemos ser responsáveis pela maneira como nos esforçamos para controlá-los, mas não por tê-los.
Raiva e Pecado
A raiva não é pecaminosa em si mesma. Em Efésios 4,26, Paulo nos diz: "Irai-vos, mas não pequeis: não se ponha o sol sobre a vossa ira". Mas essa passagem fala da nossa responsabilidade de controlar nossos sentimentos. Paulo não quer dizer que precisamos literalmente nos livrar da nossa raiva antes do pôr do sol. Ele quer dizer para não alimentá-la. Deixe-a passar. Como dito antes, isso é algo que não podemos garantir, já que só podemos influenciar nossos sentimentos.
Paulo faz a exortação "Irai-vos" porque a ira faz parte da natureza humana. Não é apenas algo que herdamos de Adão. Até mesmo o próprio Jesus se irou (ver Marcos 3,5). A ira é algo que Deus projetou em nós, assim como Ele a projetou em algumas outras criaturas. Ela desempenha uma função útil. Ela nos motiva a proteger as coisas que precisam ser protegidas, sejam elas tangíveis (como a família) ou intangíveis (como a reputação).
Assim, Tomás de Aquino observa que "a ira pode ser má, quando alguém se ira mais ou menos do que o exigiria a razão reta. Mas, o irar–se de acordo com a razão reta é meritório" (Suma Teológica II-II:158,1).
Raiva e Perdão
O problema é que muitas vezes sentimos raiva em excesso, ou raiva pelas coisas erradas, e, motivados pela raiva, podemos prejudicar injustamente em vez de ajudar. Reagir exageradamente com raiva nos leva a magoar tanto os outros quanto a nós mesmos.
Se os seres humanos não praticassem o perdão — se ficássemos com raiva por cada ofensa passada e determinados a exigir retribuição por cada uma delas — a sociedade entraria em colapso. As pessoas não seriam capazes de trabalhar juntas. A sociedade depende de uma quantidade substancial de perdão, de "deixar as coisas passarem" para funcionar, e os indivíduos que não demonstram o nível necessário de perdão acabam se isolando dos outros.
Consequentemente, precisamos separar nossa raiva, para não agir com base nela. Isso faz parte do que envolve perdoar uma pessoa. Significa estar disposto a deixar de lado a raiva que alguém provocou em nós, mesmo que demore um pouco para que esse sentimento desapareça. É frequentemente isso que buscamos quando pedimos aos outros que nos perdoem: que eles estejam dispostos a deixar a raiva de lado.
O Que o Perdão Não É
É claro que o que realmente gostaríamos ao obter o perdão de alguém é que as coisas fossem como se nunca tivéssemos ofendido essa pessoa. Gostaríamos que as coisas voltassem a ser exatamente como eram antes.
Isso pode não acontecer. Mesmo que os sentimentos negativos de alguém por nós desapareçam, a prudência pode ditar que essa pessoa não nos trate exatamente da mesma maneira. Esse é particularmente o caso se tivermos quebrado a confiança dela.
Considere os extremos que mencionamos anteriormente: se alguém é um terrorista ou molestador de crianças, então — não importa o quão arrependido esteja — simplesmente não pode ser tratado como se nunca tivesse cometido seus crimes.
A maioria de nós cometeu ofensas que não chegam nem perto disso, mas o princípio continua válido. Sentimos isso em nossas interações com os outros. Se alguém violou nossa confiança, podemos ser capazes de deixar nossa raiva de lado, mas isso não significa que vamos confiar nessa pessoa novamente. Nossa confiança terá que ser conquistada.
O perdão, portanto, não significa tratar alguém como se ele nunca tivesse pecado. Isso exigiria que deixássemos de lado nossa razão, bem como nossa raiva.
A Igreja reconhece esse princípio. Em sua encíclica Dives in Misericordia, João Paulo II observa que a "exigência tão generosa em perdoar não anula as exigências objetivas da justiça. … Em nenhuma passagem do Evangelho o perdão, nem mesmo a misericórdia como sua fonte, significam indulgência para com o mal, o escândalo, a injúria causada, ou os ultrajes. Em todos estes casos, a reparação do mal ou do escândalo, a compensação do prejuízo causado e a satisfação da ofensa são condição do perdão" (14).
Perdão Preventivo?
Não somos obrigados a perdoar quem não quer que o perdoemos. Este é um dos maiores obstáculos que as pessoas enfrentam em relação ao tema. As pessoas têm visto o perdão e o amor "incondicionais" serem tão reiterados que se sentem obrigadas a perdoar alguém antes mesmo que essa pessoa se arrependa. Às vezes, elas até dizem ao impenitente que o perdoaram preventivamente (para grande irritação do impenitente).
Não é isso que se exige de nós.
Considere Lucas 17,3-4, onde Jesus nos diz: "Se teu irmão pecar, repreende-o, e se ele se arrepender, perdoa-lhe. E caso ele peque contra ti sete vezes por dia e sete vezes retornar, dizendo 'Estou arrependido', tu lhe perdoarás".
Observe que Jesus diz para perdoá-lo se ele se arrepender, não independentemente de ele se arrepender ou não. Jesus também imagina a pessoa voltando até você e admitindo seu erro.
O resultado? Se alguém não se arrepende, você não precisa perdoá-lo.
Se você o perdoar mesmo assim, isso pode ser meritório, desde que não tenha efeitos negativos (por exemplo, encorajando mau comportamento futuro). Mas não é exigido de nós que perdoemos a pessoa.
Isso pode parecer estranho para algumas pessoas. Elas podem ter ouvido a pregação do amor e do perdão incondicionais com tanta frequência que a ideia de não perdoar a todos indiscriminadamente lhes parece antiespiritual. Elas podem até perguntar: "Mas não seria mais espiritual perdoar a todos?"
Eu compreendo esse argumento, mas há uma resposta de quatro palavras para ele: Deus não faz isso.
Nem todos são perdoados. Caso contrário, estaríamos todos caminhando em estado de graça o tempo todo e não precisaríamos de arrependimento para alcançar a salvação. Deus não gosta que as pessoas não sejam perdoadas e está disposto a conceder perdão a todos, mas não está disposto a forçá-lo a quem não o deseja. Se as pessoas não se arrependem do que sabem ser pecaminoso, elas não são perdoadas.
Jesus morreu uma vez por todas para pagar um preço suficiente para cobrir todos os pecados de nossas vidas, mas Deus não aplica seu perdão a nós de uma vez por todas. Ele nos perdoa quando nos arrependemos. É por isso que continuamos a rezar: "Perdoai as nossas ofensas", porque regularmente cometemos novos pecados dos quais nos arrependemos — alguns veniais e outros mortais, mas todos precisando de perdão.
Se Deus não perdoa os impenitentes, e não é correto dizer às pessoas que precisam fazê-lo, o que é exigido de nós?
O Que o Perdão É
Jesus nos chama a ser como Deus na demonstração de misericórdia pois "desse modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus" (Mt 5,45). Então, como Deus perdoa?
As Escrituras nos dizem que Ele "que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade" (1 Tm 2,4) e que Ele "não quer que ninguém se perca, mas que todos se arrependam" (2 Pe 3,9).
Devemos ter a mesma atitude. Devemos desejar o bem de todas as almas, mesmo das mais más. Não importa quem sejam ou o que tenham feito, precisamos desejar o seu bem maior, que é a salvação por meio do arrependimento.
E se eles não se arrependerem?
Pode-se esperar que eles não sejam culpados por suas ações e, portanto, possam ser salvos, que tenham sido afetados por transtorno mental, pressão intensa, ignorância, doutrinação ou algo que tenha afetado seu julgamento, de modo que não sejam responsáveis por suas ações no momento em que as cometeram.
Mas e se forem?
Podemos esperar que sejam levados ao arrependimento. Na verdade, devemos esperar isso mesmo para aqueles que não foram responsáveis por suas ações. Mas ser levado ao arrependimento muitas vezes requer sofrer as consequências dos próprios pecados.
É aqui que entra a ira justa. Costuma-se dizer que a ira é um desejo de vingança (ver ST II-II:158,1). Isso é um pouco mais severo do que muitos gostariam de dizer hoje em dia, mas a ira envolve realmente o desejo de que a pessoa ofensora sofra as consequências de seus pecados. Sem esse desejo, o sentimento seria algo menos do que ira, como uma simples frustração.
A ira é justa — em conformidade com a justiça — se ainda estiver fundamentalmente direcionada para o bem. Assim, pode-se desejar que uma pessoa sofra as consequências de suas ofensas para compreender suficientemente como ela magoou os outros e para aprender a não cometê-las no futuro.
No entanto,"se deseja castigar quem não o merece, ou além do merecido, ou ainda não segundo a ordem legítima, ou enfim, não em vista do fim devido, que é a realização da justiça e a correção da culpa. … E se o não observarmos, a nossa ira não será isenta de pecado" (ibid., 2).
É tão fácil para nós, em nosso estado decaído, cairmos na ira pecaminosa que as Escrituras nos alertam repetidamente contra, mas a ira tem um propósito fundamental.
Se a pessoa com quem estamos zangados se arrepende, então surge a obrigação de perdoar. Isso significa que devemos estar dispostos a deixar de lado nossa raiva, porque ela não a merece mais. Podemos ainda senti-la por algum tempo, e pode até ser aconselhável deixar a pessoa saber disso, a fim de enfatizar a lição que ela precisa aprender. Mas precisamos controlar nossas emoções para deixar a raiva de lado e, da melhor maneira possível, encorajá-la a desaparecer.
E se a pessoa não se arrepender no final das contas?
Em algum momento, precisamos deixar nosso sentimento de raiva desaparecer — não por causa dela, mas por nossa causa. Não é bom para nós ficarmos com raiva, pois isso nos leva à tentação de pecar. No fim das contas, temos que deixar o sentimento de raiva de lado e seguir em frente com a vida. Frequentemente, temos que fazer isso mesmo quando a pessoa não se arrependeu.
Mas, quanto à própria pessoa, o que devemos esperar? Com pesar, reconhecemos que é apropriado que ela receba o que escolheu, mesmo que seja o inferno. Afinal, essa é a atitude de Deus para com aqueles que escolhem a morte em vez da vida.
Autor: Jimmy Akin
Original em inglês: Catholic Answers