O Novo Adão E A Nova Mulher
Segundo a narração dos evangelistas, Jesus morreu, rezando, à hora nona, isto é, às três horas da tarde. Segundo Lucas, Ele tirara a sua última oração do Salmo 31: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23, 46; cf. Sl 31, 6). Segundo João, a última palavra de Jesus foi esta: "Está consumado" (19, 30). No texto grego, esta palavra (tetélestai) alude ao início da paixão, à hora do lava-pés, cuja narração é introduzida pelo evangelista sublinhando que Jesus amou os Seus "até o fim (télos)" (13, 1). Este "fim", este extremo cumprimento do amar foi alcançado agora, no momento da morte. Jesus foi verdadeiramente até o fim, até o limite e para além do limite. Ele realizou a totalidade do amor, deu-Se a Si mesmo.
No capítulo 6, ao tratar da oração de Jesus no monte das Oliveiras, conhecemos, com base em Hebreus 5, 9, ainda outro significado da mesma palavra (teleioũn): na Torá, significa "iniciação", consagração em ordem à dignidade sacerdotal, isto é, passagem total para a propriedade de Deus. Penso que, recordando a Oração Sacerdotal de Jesus, podemos subentender também aqui tal significado. Jesus cumpriu até ao fundo o ato de consagração, a entrega sacerdotal de Si mesmo e do mundo a Deus (cf. Jo 17, 19). Assim, nessa palavra, resplandece o grande mistério da cruz. Cumpriu-se a nova liturgia cósmica. Em lugar de todos os outros atos cultuais, entra a cruz de Jesus como a única verdadeira glorificação de Deus, na qual Deus Se glorifica a Si mesmo por meio d'Aquele em quem Ele nos dá o seu amor e assim nos atrai rumo às alturas para Si.
Os evangelhos sinóticos caracterizam explicitamente a morte na cruz como acontecimento cósmico e litúrgico: o sol escurece-se, o véu do templo rasga-se em dois, a terra treme, os mortos ressuscitam.
Ainda mais importante que o sinal cósmico é um processo de fé: o centurião (comandante do pelotão de execução), abalado com os acontecimentos que vê, reconhece Jesus como Filho de Deus: "Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!" (Mc 15, 39). Junto da cruz, tem início a Igreja dos pagãos. A partir da cruz, o Senhor reúne os homens para a nova comunidade da Igreja universal. Em virtude do Filho sofredor, eles reconhecem o verdadeiro Deus.
Enquanto os romanos, como intimidação, deixavam propositadamente pender do instrumento de tortura depois da morte os crucificados, estes, segundo o direito judaico, deviam ser tirados no mesmo dia (cf. Dt 21, 22-23). Por isso, era tarefa do pelotão de execução acelerar a morte quebrando-lhes as pernas. Aconteceu assim também no caso dos crucificados no Gólgota. Aos dois "bandidos" foram quebradas as pernas. Chegados a Jesus, porém, veem que Ele já está morto; então renunciam a quebrar-Lhe as pernas; em vez disso, um deles trespassa o lado direito – o coração – de Jesus "e logo saiu sangue e água" (Jo 19, 34). É a hora em que são degolados os cordeiros pascais; para estes, vigora a prescrição segundo a qual não se lhes deve quebrar nenhum osso (cf. Ex 12, 46). Jesus aparece aqui como o verdadeiro Cordeiro pascal, que é puro e perfeito.
Por conseguinte, nessa palavra, podemos vislumbrar também uma recordação tácita dos inícios da história de Jesus, daquela hora em que o Baptista dissera: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (Jo 1, 29). Aquilo que então devia permanecer ainda incompreensível – era apenas uma misteriosa alusão a algo do futuro – agora é realidade. Jesus é o Cordeiro escolhido pelo próprio Deus. Na cruz, Ele carrega o pecado do mundo e "tira-o fora".
Mas, ao mesmo tempo, ressoa também a parte do Salmo 34 em que se lê: "os males do justo são muitos, mas de todos eles o Senhor o liberta. O Senhor guarda seus ossos todos, nenhum deles será quebrado" (vv. 20-21). O Senhor, o Justo, sofreu muito, sofreu tudo, e, todavia, Deus guardou-O: não Lhe foi quebrado nenhum osso.
Saíram sangue e água do coração traspassado de Jesus. Em todos os séculos, a Igreja, segundo a palavra de Zacarias, olhou para esse coração traspassado e nele reconheceu a fonte de bênção indicada antecipadamente no sangue e na água. A palavra de Zacarias impele mesmo a buscar uma compreensão mais profunda daquilo que lá aconteceu.
Um primeiro grau desse processo de penetração encontramo-lo na Primeira Carta de João, que retoma vigorosamente o discurso do sangue e da água saídos do lado de Jesus: "Este é O que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo; não com a água somente, mas com a água e o sangue. E é o Espírito que testemunha, porque o Espírito é a verdade. Porque três são os que testemunham: o Espírito, a água e o sangue; e os três tendem ao mesmo fim" (5, 6-8).
Que entende dizer o autor com a afirmação insistente de que Jesus veio não só com a água, mas também com o sangue? Pode-se provavelmente supor que aluda a uma corrente de pensamento que dava valor apenas ao Batismo, mas punha de lado a cruz. E talvez isso signifique também que se considerava importante só a palavra, a doutrina, a mensagem, mas não "a carne", o corpo vivo de Cristo, exangue na cruz; signifique que se
procurava criar um cristianismo do pensamento e das ideias, do qual se queria tirar fora a realidade da carne: o sacrifício e o Sacramento.
Os Padres viram nesse duplo fluxo de sangue e água uma imagem dos dois sacramentos fundamentais – a Eucaristia e o Batismo –, que brotam do lado traspassado do Senhor, do seu coração. São a corrente nova que cria a Igreja e renova os homens. Mas os Padres, diante do lado aberto do Senhor que dorme na cruz o sono da morte, pensaram também na criação de Eva do lado de Adão adormecido, vendo assim, na corrente dos sacramentos, ao mesmo tempo a origem da Igreja: viram a criação da nova mulher do lado do novo Adão.
Autor: Bento XVI - Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição.
Livro disponível neste link para baixar.