O Mercador De Veneza Em Poucas Palavras

15/08/2021
Casa de Shylock - Shylock, Jessica e Lancelot de Jean-Pierre Simon (Wikimedia Commons)
Casa de Shylock - Shylock, Jessica e Lancelot de Jean-Pierre Simon (Wikimedia Commons)

O Mercador de Veneza é talvez a maior e, sem dúvida, a mais controversa das comédias de Shakespeare. No entanto, foi mal compreendida e interpretada a tal ponto que muitas vezes é vista como uma tragédia, não como uma comédia. Essa é a cegueira crítica da época em que nos encontramos.

Antes de uma discussão sobre essa cegueira crítica e as razões para isso, vejamos a peça em si.

O Mercador de Veneza - baixar aqui - é uma comédia tensa, mas deliciosa, centrada na necessidade do amor auto-sacrificial. Em termos de forma, funciona de duas maneiras distintas, que podem ser percebidas visualmente com o movimento de avanço horizontal da trama e o movimento moral vertical entre os preceitos virtuosos da cidade de Belmonte e a maldade venal de Veneza. Com respeito ao movimento de avanço horizontal da trama, ele tem três "nós" focais distintos, cada um dos quais é uma prova moral: a prova dos caixões, a prova do julgamento e a prova dos anéis. Em cada caso, a aprovação na prova significa um movimento em direção ao céu, da Cidade do Homem (Veneza) para a Cidade de Deus (Belmonte).

O objetivo da primeira das provas é ganhar a mão da celestial Pórcia em casamento. Pórcia, herdeira do misterioso reino do outro mundo de Belmonte, não pode ser conquistada em casamento por aqueles que valorizam ouro ou prata, mas apenas por aqueles que abraçam o caixão de chumbo, significando a própria morte. Para ser digno do amor virtuoso da virtuosa Pórcia, deve-se estar disposto a morrer para si mesmo para que se possa dar a vida pela amada.

A segunda das provas é a do julgamento, ou a prova de Shylock(1), no qual Pórcia, disfarçada de advogado, se esforça para persuadir Shylock a abandonar seu pedido de vingança e abraçar em seu lugar a necessidade de mostrar misericórdia para que possa receber misericórdia. Seu discurso sobre "a qualidade da misericórdia" é um dos mais belos monólogos que Shakespeare já escreveu, cuja beleza e moralidade foram frequentemente eclipsadas pela má interpretação crítica da peça. Mas mais sobre isso em breve.

A prova final, a dos anéis, é estabelecida por Pórcia para testar a fidelidade de Bassânio, que ganhou sua mão em casamento ao escolher o caixão de chumbo. Ele é fiel à sua palavra? Será que ele realmente dará sua vida por ela ao abraçar o vínculo de auto-sacrifício do sacramento do matrimônio, representado pelo anel que Pórcia lhe dera?

Pórcia, ainda disfarçada de advogado, convence-o a desfazer-se do anel, ilustrando a sua fraqueza e a sua falta de vontade de ser fiel ao seu vínculo. Pórcia, tendo exposto a infidelidade e fraqueza de Bassânio, não o condena, mas o perdoa em um ato de misericórdia, em total contraste com o vingativo Shylock que se recusou resolutamente a mostrar misericórdia e perdão a Antonio na cena do julgamento. Nessa prova final, portanto, Pórcia mostra-se praticando o que havia pregado no belo discurso da "qualidade da misericórdia".

Depois de examinar o enredo de O Mercador de Veneza em sua totalidade e integridade panorâmica, podemos ver como foi lamentavelmente mal interpretado por aqueles modernos maus leitores da peça que transformaram a comédia das três provas na "tragédia de Shylock". Enquanto a virtuosa Pórcia está presente e desempenha um papel crucial em todas as três provas que constituem os pontos focais da peça, Shylock está presente apenas na segunda delas. Comparado com Pórcia, Shylock é periférico. Visto que este é claramente o caso, podemos nos perguntar por que ele roubou a atuação da heroína celestial. A razão está no suposto anti-semitismo do qual ele é visto como uma vítima.

A fim de livrar a peça e seu autor da acusação de anti-semitismo, precisamos ver O Mercador de Veneza através dos olhos de Shakespeare e de seu público contemporâneo. A primeira coisa a entender é que Shakespeare e seu público teriam muito pouco contato com quaisquer judeus da vida real porque os judeus foram expulsos da Inglaterra durante o reinado de Eduardo I, trezentos anos antes. Por outro lado, os únicos agiotas que praticavam a usura na Inglaterra elizabetana eram os puritanos, a prática da usura sendo condenada pela Igreja, mas tolerada por João Calvino.

Visto que era ilegal apresentar no palco questões políticas e religiosas contemporâneas, não foi possível para Shakespeare representar seu vilão usurário como um puritano. Ele o faz sub-repticiamente, contornando a censura da época, apresentando seu vilão usurário como sendo ostensivamente judeu. A máscara alegórica teria sido percebida por seu público como um eufemismo velado para os agiotas puritanos que estavam se tornando muito impopulares na Inglaterra elisabetana. Visto que os puritanos também se opunham ao teatro e acabariam tendo sucesso no fechamento de todos os teatros da Inglaterra, Shylock teria sido insultado pelo público - mas não como judeu.

Considerando o exposto anteriormente, deve-se notar também que o sentimento anti-judaico na peça não é racista, mas econômico e teológico. Em primeiro lugar, uma leitura atenta ilustra que Shylock é detestado principalmente por sua prática de usura e não pela prática de sua fé. Na medida em que o judaísmo é mencionado, ele é considerado em termos religiosos, não raciais. Os judeus são vistos como errados em sua recusa em aceitar a divindade de Cristo, uma perspectiva teológica honesta que não constitui anti-semitismo. Quando a filha de Shylock, Jessica, foge com Lourenço e se torna cristã, ela é abraçada e aceita. Somos informados de que seu "sangue" é tão semelhante ao de Shylock como o é vinho tinto com o branco, indicativo de uma perspectiva não racial no que diz respeito às diferenças entre cristãos e judeus.

Por fim vamos comparar o personagem de Shylock com dois personagens igualmente mesquinhos nas obras de Charles Dickens, um dos quais é cristão e o outro judeu. Ebenezer Scrooge é uma figura tão central em Um Conto de Natal - baixar aquique não sentiríamos que a obra havia sido violada indevidamente se recebesse o novo título de "O Avarento"(2). Por outro lado, a figura de Fagin em Oliver Twist - baixar aqui - não é um personagem central, embora importante, o que tornaria a mudança do título para "A Tragédia de Fagin" um absurdo. Shylock tem mais em comum com Fagin do que com Scrooge(3). Ele não é o personagem central da peça, nem está presente em nada além de um sentido periférico em dois dos três pontos focais da trama. Ele precisa ser colocado em seu lugar para que possamos ver a comédia que Shakespeare escreveu e não a caricatura da tragédia que os críticos erigiram em seu lugar.

Por: Joseph Pearce

Original em inglês: Crisis Magazine


Notas:

(1) - Shylock, um judeu rico e agiota, pai de Jéssica

(2) - N.T.: A bem da verdade, em Portugal o conto teve como um de seus títulos "O Natal do Avarento"

(3) - Scrooge, um rabugento homem de negócios em Londres, sovina, solitário, sem sentimentos, sem nenhuma compaixão, fechado para o mundo, sem laços familiares, só pensa no lucro, só pensa em realizar bons negócios.