O Drama Está No Dogma

26/05/2024
A Trindade, de Jusepe de Ribera, c. 1635 [Museo del Prado, Madri]
A Trindade, de Jusepe de Ribera, c. 1635 [Museo del Prado, Madri]

Muitos leitores devem estar familiarizados com a história de São Nicolau de Myra no Concílio de Nicéia. Diz-se que, quando o santo ouviu Ário dizer uma heresia, ele ficou tão irritado que atravessou o plenário do Concílio e bateu no rosto do heresiarca. Ora, esse comportamento não deve ser imitado ou incentivado. Ainda assim, há algo admirável nele. Talvez Nicolau não conseguisse controlar seu temperamento. Mas pelo menos ele levava o dogma a sério e entendia que um erro dogmático esvaziaria o cristianismo de significado, de toda bondade e beleza. Pelo menos ele via o dogma como algo pelo qual vale a pena lutar.

Agora, esse relato pode parecer fora de época. Na verdade, porém, ele é perfeitamente adequado para a festa de hoje - não apenas porque diz respeito à Trindade, mas porque traz à tona a importância do próprio dogma.

Até hoje, o calendário litúrgico da Igreja tem comemorado e celebrado eventos históricos: Natal, Apresentação do Senhor, Páscoa, Ascensão, Pentecostes, etc. Esses eventos são mais fáceis de entender porque aconteceram em nosso mundo e envolveram pessoas como nós. Podemos apontar o local e imaginar a cena. Mas a festa de hoje não se refere a um evento. Trata-se de um dogma, e isso é sempre algo mais difícil de transmitir. Portanto, talvez devêssemos nos deter na importância do dogma em si e em nossa celebração dele. Devemos aprender a apreciar, como fez Nicolau, que o drama está no dogma.

Atualmente, muitas pessoas (inclusive muitos católicos) acharão estranho, talvez até pouco saudável, celebrar um dogma. A palavra está corretamente associada à autoridade e aos requisitos da fé - coisas abomináveis em nossa cultura. Pior ainda, hoje celebramos o dogma mais elevado, o mais dogmático de todos os dogmas, se preferir. Que Deus é Um em Três Pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo. Que cada Pessoa é inteiramente Deus e que, juntas, elas são um só Deus. Que o Pai gera o Filho, o Filho ama o Pai e o Espírito é o amor ou o vínculo entre eles.

A maioria das pessoas achará isso muito chato e desejará mais histórias e eventos - mais ação. Mas esse dogma é o propósito de todas as outras festas, de tudo o mais que celebramos até agora. Podemos ter a impressão de que o Domingo da Trindade é apenas um adendo à Páscoa, à Ascensão e ao Pentecostes. Mas Deus entrou no mundo, sofreu, morreu e ressuscitou precisamente para comunicar a Trindade - nos dois sentidos da palavra comunicar. Ou seja, para revelar a vida interior do Deus Trino e para transmitir essa vida ao Homem.

A mentalidade moderna despreza os dogmas religiosos. Esse é o cerne do liberalismo na religião contra o qual São John Henry Newman se opôs. Um dos piores mitos modernos é que o dogma não importa. O que importa é que todos nós simplesmente amemos uns aos outros, façamos o bem, sirvamos aos pobres, etc. Na melhor das hipóteses, o dogma atrapalha. Na pior das hipóteses, ele leva à intolerância e à perseguição.

Mas a mente humana é feita para dogmas. Se você fechar a porta para eles, eles entrarão sorrateiramente por outro caminho. A religião da atualidade despreza o dogma religioso tradicional apenas para admitir seus próprios dogmas, que são extraordinariamente intolerantes. Portanto, o que você acredita realmente importa. E aqueles que afirmam o contrário tendem a ser dogmáticos quanto a isso. O modernismo começa convencendo os mestres da Igreja a deixarem de lado o dogma para depois trazê-lo de volta com uma vingança.

Agora, a razão para acreditar e celebrar o dogma da Trindade é porque ele é verdadeiro. Ele não nos foi revelado para nenhum propósito utilitário - não para construir uma civilização ou salvar o Ocidente ou qualquer coisa do gênero. Celebramos esse dogma porque Deus existe. E Ele deve ser adorado porque Ele é e como Ele é. Portanto, as orações da Missa de hoje falam de Deus simplesmente como Ele é e não sobre qualquer coisa que Ele tenha feito.

Dito isso, viver de acordo com o dogma também traz grandes benefícios, como a devoção à verdade sempre traz. Acreditar e viver a verdade do Deus Trino nos liberta da escravidão deste mundo. Ela relativiza todo o resto e proclama nossa independência de qualquer coisa criada. É por isso que a oração é um ato subversivo. Deus é. Nenhum Estado, nenhuma economia, nenhuma ideologia pode tomar o Seu lugar. Muitas forças procuram moldar nossa vida, moldar-nos de acordo com o poder, o prazer e as posses. Mas aqueles que adoram o Deus Trino estão fora do alcance dessas forças e são moldados pela Trindade.

Em outras palavras, o que acreditamos molda quem somos. É inevitável que nos tornemos semelhantes ao que adoramos. (cf. Sl. 115) Portanto, aderir ao único Deus verdadeiro nos forma na verdade. Significa ser moldado pelo Deus que não é pura vontade (como é Alá), mas no qual o Logos, a razão divina, é central. (Nossa celebração do dogma nos molda de acordo com Aquele que é uma comunidade de amor. Um povo em adoração comum à Trindade assume Sua semelhança.

Hoje nos regozijamos por termos recebido um dogma. O Deus a ser adorado nos foi dado a conhecer e fomos introduzidos em Sua companhia. Pelo fato de Deus ser Um, estamos livres da inclinação quase universal da humanidade ao politeísmo e ao panteísmo. Como Deus é Três, somos introduzidos em sua comunidade de vida e amor.

Autor: Pe. Paul D. Scalia

Original em inglês: The Catholic Thing