O Deus Trino
Quantas vezes fizemos o sinal da cruz e invocamos o nome do Deus Trino sem pensar no que estávamos fazendo? Em seu significado original, cada vez que realizamos esta ação, nosso batismo é renovado. Tomamos em nossos lábios as palavras pelas quais nos tornamos cristãos e conscientemente aceitamos em nossa vida pessoal algo que nos foi concedido no batismo sem nenhuma contribuição ativa ou reflexão de nossa parte. Naquela ocasião, foi derramada água sobre nós, e foram ditas as seguintes palavras: "Eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo".
A Igreja torna o homem cristão ao pronunciar o nome do Deus Trino. Desta forma, ela expressou desde o início o que considera o elemento mais decisivo da existência cristã, a saber, a fé no Deus Trino. Isso nos decepciona. Está tão longe da nossa vida. É tão inútil e tão incompreensível… O que isso significa em nossa vida diária, neste nosso mundo?
A Igreja talvez tenha ido longe demais aqui? Não deveríamos antes deixar algo tão grande e inacessível como Deus em sua inacessibilidade? Pode algo como a Trindade ter algum significado real para nós?… Se esta proposição não tivesse nada a nos dizer, não teria sido revelada. E, de fato, só poderia ser revestida de linguagem humana porque já havia penetrado até certo ponto no pensamento e na vida dos Homens.
Comecemos no ponto em que o próprio Deus começou. Ele se autodenomina Pai. A paternidade humana pode dar-nos uma ideia do que é Deus; mas onde a paternidade não existe mais, onde a paternidade genuína não é mais vivida como um fenômeno que ultrapassa a dimensão biológica para abarcar também a esfera humana e intelectual, torna-se sem sentido falar de Deus Pai.
Onde desaparece a paternidade humana, não é mais possível falar e pensar em Deus. Não é Deus que está morto; o que está morto (pelo menos em grande parte) é a pré-condição no homem que torna possível a Deus viver no mundo. A crise da paternidade que vivemos hoje é um aspecto básico da crise que ameaça a humanidade como um todo.
O Pai bíblico não é uma duplicata celestial da paternidade humana. Em vez disso, Ele postula algo novo: Ele é a crítica divina da paternidade humana. Deus estabelece seu próprio critério.
Sem Jesus, não sabemos o que é verdadeiramente o "Pai". Isso se torna visível em sua oração, que é o fundamento de Seu Ser. Um Jesus que não estivesse continuamente absorto no Pai e não estivesse em contínua comunicação íntima com Ele seria um ser completamente diferente do Jesus da Bíblia, o verdadeiro Jesus da história…
Seguir Jesus significa olhar o mundo com os olhos de Deus e viver de acordo com eles. Jesus mostra-nos o que significa conduzir toda a vida a partir da afirmação de que «Deus é». Jesus nos mostra o que significa dar prioridade genuína à primeira tábua dos Dez Mandamentos. Ele deu um significado a esse centro e revelou o que é esse centro…
A resposta é tão essencial para o Pai dizer "Filho" quanto é essencial para o Filho dizer "Pai". Sem este tratamento, o Pai também não seria o mesmo. Jesus não O toca apenas exteriormente; Ele pertence à divindade de Deus como Filho. Antes que o mundo fosse criado, Deus já é amor de Pai e Filho. Ele pode tornar-se nosso Pai e critério de toda paternidade precisamente porque Ele mesmo é Pai desde a eternidade. Na oração de Jesus, a vida interior de Deus torna-se visível para nós: vemos como é o próprio Deus. A fé no Deus Trino nada mais é do que a exposição do que se passa na oração de Jesus. Em sua oração, a Trindade é revelada.
O Pai e o Filho não se tornam um de tal maneira que se dissolvem um no outro. Permanecem distintos entre Si, pois o amor tem como base um "vis-à-vis" que não se abole… Eles são um em virtude do fato de que Seu amor é fecundo, que vai além dEles. Na Terceira Pessoa em que se entregam um ao outro, no Dom, Eles são Eles mesmos e são Um… A unidade que isso revela é a Trindade.
Portanto, tornar-se cristão significa participar da oração de Jesus, entrar no modelo dado por Sua vida, ou seja, o modelo de Sua oração. Tornar-se cristão significa dizer "Pai" com Jesus e, assim, tornar-se filho, filho de Deus – Deus – na unidade do Espírito, que nos permite ser nós mesmos e precisamente assim nos leva à unidade de Deus. Ser cristão é olhar o mundo a partir deste ponto central, que nos dá liberdade, esperança, determinação e consolação…
Isso significa que devemos aprender novamente a tomar Deus como ponto de partida quando buscamos compreender a existência cristã. Essa existência é a crença em Seu amor e fé de que Ele é Pai, Filho e Espírito Santo – pois só assim a afirmação de que Ele é "amor" ganha sentido. Se ele não é amor em Si mesmo, Ele não é amor de forma alguma. Mas se Ele é amor em Si mesmo, Ele deve ser "Eu" e "Tu", e isso significa que Ele tem de ser Trino. Peçamos-Lhe que abra os nossos olhos para que Ele volte a ser a base da nossa compreensão da existência cristã, porque assim nos compreenderemos de novo e renovaremos o Homem.
Autor: Joseph Ratzinger
Trecho do livro: The God of Jesus Christ: Meditations on the Triune God