IA: Proximidade Com A Besta
![Dorothy Gale com o Tik-Tok revestido de cobre, o Homem Máquina, de Ozma de Oz, de L. Frank Baum, 1907 [Ilustração de John R. O’Neill]](https://6323b73651.clvaw-cdnwnd.com/24b39ffcea37433b4ba1d3b1f650338a/200002991-c3d80c3d82/Imagem%20-%20Traduzida.jpeg?ph=6323b73651)
Em 1984, aos dezenove anos, retornei de um ano testando minha vocação para a vida religiosa. Tínhamos sido privados, ou melhor, libertados, da televisão durante esse período. Nas minhas curtas férias depois disso, fui à Blockbuster e aluguei uma fita VHS de um novo filme popular chamado O Exterminador do Futuro.
Mostrava um mundo futuro onde máquinas estavam em guerra com humanos, e as máquinas, ou como os chamaríamos hoje, os "drones", matavam. Era um filme de ficção científica. Quarenta e um anos depois, o que era fantasia agora é realidade: drones, mesmo do tamanho de moscas, são um dos principais meios de guerra em muitos campos de batalha, alguns sofisticados, outros, como no caso dos usados pelo ISIS na Batalha de Mossul, rudimentares.
Quatro anos antes do lançamento desse filme, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, que viria a se tornar o Papa Bento XVI, um dos melhores teólogos da Igreja nos últimos séculos, proferiu um discurso em uma conferência em Palermo, na Sicília. (Pesquisando na Internet por artigos sobre esse discurso, só se consegue encontrar um, um pequeno texto publicado na Aleteia, escrito em 2018 pelo professor Daniel Esparza.)
Entre outros assuntos discutidos pelo guardião doutrinário da Igreja, Ratzinger abordou o significado aparentemente esotérico da descrição da "Besta", no Livro do Apocalipse (13,18), em particular o nome da Besta, ou melhor, o número "666".
Este assunto, normalmente relegado às margens da religião ou às dissertações inéditas de pessoas mentalmente instáveis, neste discurso pouco conhecido do Cardeal Ratzinger, pode ser um dos mais importantes – e proféticos – discursos em antecipação ao mundo que se desenrola em ritmo acelerado em meados do século XXI.
Assim como em "O Exterminador do Futuro", o mundo da Inteligência Artificial (IA) em 1980 era pura fantasia, e os alertas sobre o perigo da "máquina" pareciam coexistir com os delírios do hospício.
Baseando-se na experiência dos campos de concentração nazistas, no entanto, Ratzinger disse que eles "cancelam rostos e história, transformando o homem em um número, reduzindo-o a uma engrenagem em uma máquina enorme".
Ele continuou, alertando sobre os perigos futuros que se avizinhavam:
"o homem deve ser interpretado por um computador e isso só é possível se traduzido em números. A Besta é um número e se transforma em números. Deus, no entanto, tem um nome e chama pelo nome. Ele é uma pessoa e procura a pessoa".
Muitos anos antes, o Pe. Romano Guardini, um teólogo altamente influente no pensamento de Joseph Ratzinger, falou dos perigos desencadeados pela era pós-nuclear, mas que se aplicam tanto, se não mais, à era da IA:
"No centro dos esforços da cultura vindoura estará o problema do poder. Sua solução permanecerá crucial. Todas as decisões enfrentadas pela era futura – aquelas que determinam o bem-estar ou a miséria da humanidade e aquelas que determinam a vida e a morte da própria humanidade – serão decisões centradas no problema do poder. Embora ele aumente automaticamente com o passar do tempo, a preocupação não será o seu aumento, mas primeiro a contenção e, em seguida, o uso adequado do poder".
Desde o início, no Jardim, quando foi assegurado à humanidade, pelo Pai da Mentira - em quem, como disse o Senhor, não havia verdade - que poderíamos nos tornar "como Deus", o homem caído parece incapaz de cautela e moderação.
Este não é o equivalente do século XXI aos seguidores destruidores de máquinas do Sr. Ned Ludd, embora essa seja a acusação daqueles determinados a seguir em frente com o futuro "inevitável" da IA. A Besta, o número, não apenas existe, mas tem uma inteligência infinitamente superior à nossa. Ele sabe tudo sobre o uso irrestrito e impróprio do poder.
Se há uma qualidade necessária neste momento, talvez mais do que qualquer outra, é o dom do discernimento.
No Livro dos Provérbios, é-nos dito: "Bem-aventurado o homem que descobre a sabedoria, que adquire discernimento". Discernimento, etimologicamente, é muito mais do que julgar bem; inclui o sentido de "peneirar", como o garimpeiro peneira muita terra antes de encontrar a partícula de ouro. São Paulo nos encoraja, em Efésios, a "discernir o que é agradável ao Senhor ".
A visão profética e extraordinária de Ratzinger sobre o significado do número da Besta e as possibilidades destrutivas da máquina ecoam palavras muito anteriores de outro profeta, G.K. Chesterton. Ele disse que "quanto mais próximo um homem está em ser ordenado e classificado, mais próximo ele está de ser um autômato. Quanto mais próximo ele está em ser um autômato, mais próximo ele está em ser uma besta".
Poderíamos até dizer: 'quanto mais próximo ele está em ser a Besta'.
Para os cristãos, o advento e o rápido desenvolvimento da IA nos trouxeram a uma época que exigirá muito discernimento. Isso pode nos colocar em desacordo com muitos, incluindo alguns dos nossos, que pensarão que não somos apenas loucos, mas também maus. Se houver uma combinação das forças do mal com a tecnologia, uma palavra profética, como a do Cardeal Ratzinger, será extremamente necessária.
A moderação e o uso adequado do poder não se encaixam no que Solzhenitsyn chamou de "emoções da era das cavernas: ganância, inveja e falta de controle". Essas emoções não se restringem às cavernas; elas estão bem à vontade no Vale do Silício ou em Wall Street.
O discernimento não é algo dado ou facilmente conquistado; é preciso trabalhar para conquistá-lo. Isso exigirá trabalho e, em última análise, talvez seja somente a Igreja a fornecer os meios necessários.
Um sinal de encorajamento e esperança nestes tempos: tanto com a escolha do seu nome quanto com várias declarações que já fez, o Papa Leão identificou a IA (que se acredita ser o tema da sua primeira Encíclica) como um desafio para a Igreja e um perigo para a "defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho" (Audiência aos Membros do Colégio Cardinalício).
Autor: Pe. Benedict Kiely
Original em inglês: The Catholic Thing
Referência:
- Box "A mágica Terra de Oz" - História Completa com os 14 livros da série