Evangelizar Pela Confiança

17/03/2023

Veja como, em São Mateus, o nascimento de Cristo é rapidamente seguido pelo massacre dos Santos Inocentes. O que este episódio do Evangelho nos ensina talvez seja isto: desde o início da Encarnação, Cristo caminha para a sua Paixão.

E se fizermos o que se chama na lectio divina uma atualização (para ver como este texto sobre os Santos Inocentes se aplica à nossa condição de cristãos hoje), podemos traçar um paralelo esclarecedor com o que muitos novos convertidos puderam experimentar.

Com efeito, na vida do convertido, do recém-nascido em Cristo, chega sempre um momento em que a sua nova identidade (que nasce do «nascimento» de Cristo nele através do baptismo) é mal acolhida pelos que o rodeiam, pelas pessoas próximas, ou pelas pessoas que ele encontra por acaso na vida.

A experiência do desprezo

Há algo mortificante e ultrajante sobre esse outro tipo de batismo. Podemos ser impassíveis e impávidos, mas o fato é que a expressão de desencanto, para usa de um eufemismo, raramente deixa alguém indiferente ou incólume. Quer queiramos ou não, somos feitos para o amor, e qualquer manifestação de aversão, qualquer sinal de inimizade, necessariamente deixa em nós vestígios, uma espécie de hematoma ou amargura.

É assim que uma conversa é encurtada, porque o outro se dá conta, com um misto de surpresa óbvia e desdém reprimido, de que a pessoa é cristã, é por vezes uma experiência em que nos é dado viver, de forma íntima e escala diminuta, o que Cristo experimentou: a rejeição e a humilhação da rejeição, depois a ferida resultante e uma forma de morte (morte de um diálogo, de um relacionamento talvez, ou ainda, mais amplamente, morte social).

O desprezo que recebemos como uma pobre criatura crédula ou vítima de uma peste faz-nos assim participar, em pequena escala, mas não menos real, da Paixão de Jesus. E é aí que se desenrola e se vive um drama íntimo, que pode determinar por muito tempo a nossa relação com os outros, o nosso modo de ser cristão na sociedade, e também a nossa vontade de assumir (ou não) o mandato missionário de fazer discípulos de todas as nações, como Cristo nos pede.

O exemplo de Cristo

Com efeito, a experiência da rejeição e da amargura que ela provoca podem nos levar a escolher três caminhos que são verdadeiros impasses missionários, três caminhos que esterilizarão a nossa vida cristã, ou limitarão severamente, pelo menos, a nossa capacidade de dar razão à esperança que há em nós. Estas três vias apresentam-se como as três tentações a evitar:

  1. Fuga (evitamos ser identificados ou falar sobre assuntos delicados);
  2. Desprezo (cultiva-se secretamente em si o ódio do mundo);
  3. Conflito (respondemos à agressão verbal com agressão verbal).

Assim que seguimos a Cristo, caminhamos para a sua Paixão, é inevitável (Jo 15, 20). Para aprender a viver esta paixão que nos espera, é imperativo recorrer ao exemplo de Cristo acorrentado para ver como viveu a sua própria Paixão e aprender d'Ele. Agora, os aspectos mais misteriosos do comportamento de Cristo são a sua habilidade:

  1. Não fugir (quando ainda poderia tê-lo feito no Horto das Oliveiras);
  2. Não cair no desacato (quando é submetido a uma paródia de julgamento onde se vê a ignomínia dos sacerdotes, a má fé das testemunhas e a maldade da multidão);
  3. Não responder ao mal com o mal (sofrendo violência sem ceder ao ódio ou revidar).

Este exemplo de Cristo preso, desprezado e martirizado pode nos servir em todas as fases de nossa vida cristã. É importante entender seu escopo, no entanto. Não se trata, aqui, de colecionar, por prazer masoquista, sofrimento moral e físico. Já pecamos por dolorismo(1) no passado da Igreja, e é importante evitar cair nessa armadilha.

A missão, lugar de paixão

Onde a imitação do Cristo sofredor pode nos ser útil é em nossa vida missionária, e especialmente na fase de pré-evangelização, que consiste essencialmente em construir pontes com as pessoas a quem fomos enviados ou a Providência nos faz encontrar.

Neste esforço de acolher a pessoa que o Senhor põe em nosso caminho ou de entrar em contato com a pessoa a quem o Senhor nos envia, é perfeitamente possível que soframos pequenas rejeições ou, seja como for, possa se instalar um distanciamento assim que alguém se declara crente.

A expressão de recusa não precisa ser muito óbvia para ser percebida e sentida. Às vezes é simplesmente uma questão de silêncio, de um olhar que se desvia, de um rosto que se fecha, para entendermos que não somos mais bem-vindos. E claro, não insistimos, com quem está fechado à conversa.

Mas o que provavelmente acontecerá se, por causa de uma ou mais más experiências, deixarmos que a fuga, o desprezo ou o conflito determinem nosso relacionamento com os não-crentes? Fica arruinada qualquer possibilidade de encontro, de conversa amigável, de relacionamento e, eventualmente, de testemunho e proposta de fé.

Isso é claramente entendido pelos dois autores do livro "I Once was Lost"(2) de Don Everts e Doug Schaupp. Nos anos 1990-2000, esses pastores estudaram longamente o caminho de conversão de 2.000 jovens incrédulos e fizeram uma observação muito útil para a evangelização em um contexto pós-moderno.

Eles descobriram que, apesar da singularidade de cada conversão, as mesmas transformações interiores eram experimentadas por todos, em uma ordem quase sempre semelhante. Eles chamaram essas transformações, essas transições de um estado para outro, de "limiares de conversão" (vídeo abaixo).

Os cinco limiares da conversão

Everts e Schaupp estabeleceram cinco limiares, que envolvem sucessivamente a passagem:

  1. Da desconfiança de todos os crentes para começar a confiar em certos crentes ou mesmo em certos aspectos da vida cristã;
  2. Da indiferença à religião à curiosidade genuína sobre Cristo;
  3. Do fechamento para uma possível mudança de vida e abrir-se para acreditar;
  4. De uma sede mais ou menos grande de descobrir a verdade sobre Jesus a uma necessidade premente de descobrir uma verdade considerada vital sobre Jesus;
  5. Da rejeição à aceitação de Jesus Cristo como o Salvador.

Agora, o que você precisa saber é que essas várias "conversões" têm algo misterioso sobre elas (elas assinalam a livre intervenção de Deus no coração e na vida das pessoas) e algo orgânico (elas fluem umas das outras, com bastante regularidade).

Mesmo que o tempo de passagem de um limiar para outro varie conforme as pessoas, mesmo que possa haver retrocesso ou que o padrão seguido seja por vezes mais espiral do que linear, as pessoas passam, portanto, quase todas, de uma forma ou de outra, por cada um desses limiares, e na ordem apresentada pelos autores, antes de chegar à plena adesão.

Assim, percebe-se, a primeira transição da desconfiança para a confiança é de capital importância. Sem ela nunca (ou quase nunca) haverá a possibilidade de travar uma conversa ou de despertar a curiosidade por um testemunho de vida ou reflexões interessantes, ou qualquer outra coisa.

Segue-se que os cristãos precisam estar especialmente cientes do que pode acontecer neste estágio crucial do "relacionamento de evangelização". Eles devem estar cientes das várias tentações que podem encontrar no caminho ao anunciar a Boa Nova.

Venenos e contravenenos

Como dissemos, em um contexto social e cultural onde a simpatia não é conquistada antecipadamente, os cristãos podem reagir mal e arruinar qualquer chance de criar vínculos. Don Everts e Doug Schaupp determinaram cinco reações ruins, bastante comuns entre os cristãos:

  1. Ficar na defensiva e tentar se justificar;
  2. Sentir-se ofendido, indignar-se, depois recolher-se interiormente em sua ferida;
  3. Fugir do contato, interações, relacionamentos com não crentes;
  4. Responder interiormente ao desprezo com desprezo;
  5. Envolver-se de forma colérica em uma polêmica ácida.

Em vez de simplesmente permitir-se as essas reações emocionais, que às vezes são bastante compreensíveis, a pessoa buscará ajuda do alto. Assim, não negaremos o que sentimos - isso seria inútil e doentio -, mas não daremos rédea solta a inclinações ou sentimentos que arruinariam a possibilidade de inspirar confiança no outro.

Em vez disso, pediremos a Deus a força de não responder à frieza com frieza, ao desprezo com desprezo, etc. Com base no mistério da Sua morte e ressurreição, pediremos a Jesus que da morte/iticação nasça a vida, que do deserto da desconfiança brote a água do Espírito. Viveremos então, em pequena escala, o mistério da Cruz.

Uma cruz sobre a qual recai toda a maldade do mundo, e que a absorve sem jamais devolvê-la ao agressor, rompendo assim o círculo vicioso do ódio, da vingança e da violência (Ef 2,14). Assim, de forma voluntária, dócil e corajosa, faremos a escolha, sob a ação da graça e com a ajuda dela, de reagir diferentemente, ou seja, com caridade.

Os autores apresentam cinco maneiras de superar a mortificação por meio do amor, cinco hábitos a serem adotados para construir com sucesso a confiança e permitir que o relacionamento se desenvolva além desse primeiro limiar. Aqui ficam, muito brevemente expostos, estes cinco bons hábitos a adotar:

  1. Em vez de ficar na defensiva, reserve um momento para rezar pela pessoa, o que deve nos ajudar a olhar para ela com compaixão;
  2. Ao invés de se ofender com a forma do outro ver as coisas, aproveite para aprender a ver o mundo pelos olhos do outro;
  3. Ao invés de evitar contatos, opte por criar vínculos, estar presente para os outros, conviver com eles, compartilhar sua vida e conhecer sua realidade;
  4. Ao invés de julgar o outro com desprezo e presunção, saúde e encoraje o autêntico bem que nele descobrimos;
  5. Ao invés de entrar em polémica e colocar-se como inimigo, desenvolva a cultura da hospitalidade (nomeadamente acolhendo as pessoas em casa, à mesa da amizade).

Autor: Alex La Salle 

Original em francês: Le Verbe 


Notas:

(1) - O "dolorismo" constitui a valorização da dor em si mesma como centro da espiritualidade cristã. Evidente que hoje esta teologia é inaceitável, sendo, sem sombra de dúvida, a grande responsável pela aversão hodierna à mortificação.

(2) - Sem tradução para o português.