Encíclica “Annum sacrum”

03/06/2023

Com esta encíclica, o Papa Leão XIII preparou a consagração da humanidade ao Sagrado Coração de Jesus no ano jubilar de 1900.

Aos nossos veneráveis Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos do Mundo Católico em Graça e Comunhão com a Sé Apostólica.

Veneráveis Irmãos, Saudação e Bênção Apostólica.

Com nossa carta apostólica promulgamos recentemente, como bem sabeis, o ano santo, o qual, segundo a tradição, será dentro em breve celebrado nesta alma cidade de Roma. Hoje, na esperança e na intenção de tornar mais santa esta grande solenidade religiosa, propomos e recomendamos um outro ato verdadeiramente solene. E temos todos os motivos, se ele for cumprido por todos com sinceridade de coração e com unânime e espontânea vontade, de esperar frutos extraordinários e duradouros em vantagem da religião cristã e de todo o gênero humano.

2. Mais vezes, a exemplo dos nossos predecessores Inocêncio XII, Bento XIII, Clemente XIII, Pio VI, Pio VII, Pio IX, nos esforçamos por promover e pôr em sempre mais viva luz aquela excelentíssima forma de piedade religiosa, que é o culto do sacratíssimo Coração de Jesus. Era essa a finalidade principal do nosso decreto de 28 de junho de 1889, com o qual elevamos ao rito de primeira classe a festa do Sagrado Coração. Agora, porém, pensamos numa forma de homenagem ainda mais esplêndida, que seja como o cume e coroação de todas as honras que foram tributadas até agora ao Coração sacratíssimo ao nosso redentor Jesus Cristo. Na verdade, isso não é novo. Com efeito, faz 25 anos, aproximando-se o II centenário dirigido a comemorar a missão que a bem-aventurada Margarida Maria Alacoque havia recebido do alto, de propagar o culto do Coração divino, de toda parte, não somente de particulares, mas também de bispos, chegaram numerosas castas a Pio IX, com as quais se pedia que se dignasse consagrar o gênero humano ao augustíssimo Coração de Jesus. Preferiu-se, naquelas circunstâncias, adiar para dar tempo a decisão mais amadurecida; entrementes se dava faculdade às cidades que o desejassem, de consagrar-se com a formula prescrita. Tendo-se agora apresentado novos motivos, julgamos ter chegado o tempo de realizar aquele projeto.

3. Este testemunho universal e solene de honra e de piedade é plenamente devido a Jesus Cristo, precisamente porque rei e senhor de todas as coisas. Com efeito, a sua autoridade não se estende somente aos povos que professam a fé católica e àqueles que, validamente batizados, pertencem por direito à Igreja (ainda que erros doutrinais os mantenham afastados dela ou dissensões infringiram os vínculos da caridade), mas abraça também todos aqueles que não têm a fé cristã. Eis porque toda a humanidade está realmente sob o poder de Jesus Cristo. Com efeito, aquele que o Filho unigênito do Pai tem em comum com ele a mesma natureza, "resplendor de sua glória e expressão do seu ser" (Hb 1,3), tem necessariamente tudo em comum com o Pai e, portanto o pleno poder sobre todas as coisas. Esse é o motivo pelo qual o filho de Deus, pela boca do profeta, pode afirmar: "Fui constituído soberano sobre Sião, seu monte santo. O senhor me disse: Tu és meu filho; eu hoje te gerei. Pede-me e te darei como posse as gentes e como domínio os confins da terra" (Sl, 6-8). Com essas palavras ele declara ter recebido de Deus o poder, não somente sobre toda a Igreja, prefigurada em Sião, mas também sobre todo o resto da terra, até onde se estendem os seus confins. O fundamento desse poder universal é claramente expresso naquelas palavras: "Tu és meu filho". Pelo fato de ser o filho do rei de todas as coisas, é também herdeiro de seu poder universal. Por isso o salmista continua com as palavras: "Dar-te-ei em posse as gentes". Semelhantes a esta são as palavras do apóstolo Paulo: "Constituiu-o herdeiro de todas as coisas" (Hb 1,2).

4. Deve-se ter presente, sobretudo o que Jesus Cristo, não por meio dos seus apóstolos e profetas, mas com as suas próprias palavras afirmou do seu poder. Ao governador romano que lhe pedia: "Portanto tu és rei" (Jo 18,37), A vastidão do seu poder e a amplidão sem limite de seu reino são claramente confirmadas pelas palavras dirigidas aos apóstolos: "Foi me dado todo poder nos céu e ma terra" (Mt 28,18). Se a Cristo foi concedido todo poder, disso deriva necessariamente que o seu domínio deve ser soberano, absoluto, não submetido a ninguém, de modo que não pode existir outro nem igual nem semelhante. E como esse poder lhe foi dado, quer no céu quer na terra, devem estar submetidos a ele o céu e a terra. Com efeito, ele exerceu esse seu direito próprio e individual quando mandou aos apóstolos pregar sua doutrina, reunir, por meio do batismo, todos os homens no único corpo da Igreja, e impor leis, as quais ninguém se pode subtrair sem pôr em perigo a própria salvação eterna.

5. E não é tudo. Cristo não tem poder de mandar somente por direito de nascimento, sendo o Filho unigênito de Deus, mas também por direito adquirido. Com efeito, ele nos libertou "do poder das trevas" (Cl 1,13) e "deu a si mesmo como resgate para todos" (1Tm 2,6). Por isso, para ele não somente os católicos e quantos receberam o batismo, mas também cada um e todos os homens tornaram-se "um povo que ele adquiriu" (1Pd 2,9). A esse propósito Agostinho observa justamente: "Quereis saber o que ele adquiriu: Prestai atenção naquilo que deu e entendereis o que comprou. O sangue de Cristo: eis o preço. E o que pode valer tanto? O quê a não ser o mundo inteiro? Para tudo deu tudo".

6. Santo Tomás, tratando da questão, indica porque e como os infiéis estão submetidos ao poder e à jurisdição de Jesus Cristo. Com efeito, posto o quesito se o seu poder de juiz se estende ou não a todos os homens, responde que, como "o poder do juiz é uma conseqüência do poder real", deve-se concluir que "quanto ao poder, tudo está submetido a Jesus Cristo, ainda que tudo não lhe esteja submetido quanto ao exercício do seu poder". Esse poder e esse domínio sobre os homens exerce-o por meio da verdade, da justiça, mas sobretudo por meio da caridade.

7. Contudo Jesus, pela sua bondade, a esse seu dúplice título de poder e de domínio, permite que nós acrescentemos, por nossa parte, o título de uma consagração voluntária. Jesus Cristo, como Deus e redentor, está, sem dúvida, na posse plena de tudo o que existe, enquanto nós somos tão pobres e indigentes que não temos nada para lhe oferecer como coisa verdadeiramente nossa. Contudo, na sua bondade e amor infinito, não somente não recusa que lhe ofereçamos e consagremos o que é dele, como se fosse nosso bem, mas ainda o deseja e o pede: "Filho, dá-me o teu coração" (Pr 23,26). Podemos, portanto, com a nossa boa vontade e as nossas boas disposições de ânimo apresentar-lhe um dom agradável. Consagrando-nos a ele, não somente reconhecemos e aceitamos abertamente com alegria seu domínio, mas afirmamos com os fatos que, se aquilo que o oferecemos fosse verdadeiramente nosso, o ofereceríamos a ele da mesma forma com todo o coração. E mais, pedimos-lhe que não lhe desagrade receber de nós o que, na realidade, é plenamente dele. Assim deve ser entendido o ato de que falamos, e esse é o valor das nossas palavras.

8. Como o Sagrado Coração é o símbolo e a imagem transparente da caridade infinita de Jesus Cristo, que nos estimula a dar-lhe amor por amor, é tanto mais conveniente consagrar-se ao seu augustíssimo Coração, que não significa outra coisa senão entregar-se e unir-se a Jesus Cristo. Com efeito, todo ato de honra, de homenagem e de piedade tributados ao Coração divino, na realidade é dirigido ao próprio Cristo.

9. Solicitamos, portanto, e exortamos a todos os que conhecem e amam o Coração divino a cumprir espontaneamente este ato de consagração. Além disso, desejamos vivamente que ele seja cumprido por todos e no mesmo dia, para que os sentimentos de tantos milhares de corações, que fazem a mesma oferta, subam todos, ao mesmo tempo, ao trono de Deus.

10. Mas como podemos esquecer a imensa multidão de pessoas, pelas quais ainda não brilhou a luz da verdade cristã? Nós ocupamos o lugar daquele que veio salvar o que estava perdido e deu o seu sangue pela salvação de todos os homens. Eis porque a nossa solicitude está continuamente dirigida àqueles que ainda jazem na sombra da morte e enviamos a todo lugar missionários de Cristo para instruí-los e conduzi-los a vida. Agora, comovidos pelo seu destino, recomendamo-los vivamente ao sacratíssimo Coração de Jesus e, no que nos diz respeito, consagramo-los a ele.

11. Dessa forma, essa consagração que exortamos a cumprir, poderá ser útil a todos. Com efeito, com esse ato, os que já conhecem e amam Jesus Cristo, experimentarão facilmente um aumento de fé e de amor. Aqueles que, mesmo conhecendo o Cristo, se descuidam da observância da sua lei e dos seus preceitos, terão modo de receber daquele Coração divino a chama do amor. Finalmente, para os que são mais infelizes do que os outros, porque ainda envolvidos nas trevas do paganismo, pediremos todos juntos a ajuda do céu, para que Jesus Cristo, que já os tem submetidos "quanto ao poder", possa também tê-los submetidos "quanto ao exercício desse poder". E rezamos também para que isso se cumpra não somente no mundo futuro, "quando ele executará plenamente sobre todos a sua vontade, salvando uns e castigando outros", mas também nesta vida terrena com o dom da fé e da santificação, de forma que, com a prática dessas virtudes, possam honrar devidamente a Deus e aspirar assim à felicidade do céu.

12. Tal consagração nos leva a esperar para os povos uma era melhor; com efeito pode estabelecer ou fortalecer aqueles vínculos que, por lei de natureza, unem as nações a Deus.

13. Nestes últimos tempos tudo se fez para levantar um muro de divisão entre a Igreja e a sociedade civil. Nas constituições e no governo dos Estados, não se tem em consideração nenhuma a autoridade do direito sagrado, com a finalidade de excluir toda influência da religião sobre a convivência civil. De tal forma se quer arrancar a fé em Cristo, e se fosse possível, banir o próprio Deus da terra. Com tamanha temeridade de ânimos, não há de que se admirar que grande parte da humanidade esteja envolvida em tal desordem e presa por estorvo tão grave que não deixe mais ninguém viver sem temores e perigos? Não há dúvida que com o desprezo da religião, são atingidas as bases mais sólidas da incolumidade pública. Justo e merecido castigo de Deus aos rebeldes que, abandonados às próprias paixões e escravos de sua própria cobiça, acabam vítimas de sua libertinagem.

14. Daí deriva aquele aluvião de males, que faz tempo, nos ameaçam e nos levam impelidos a procurar a ajuda naquele que unicamente tem a força de afastá-los. E quem poderia ser esse senão Jesus Cristo, o unigênito filho de Deus? "Com efeito, não há outro nome dado aos homens debaixo do céu, no qual possamos ser salvos" (At 4,12). Deve se recorrer a ele que é "o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14,6). As trevas têm obscurecido as mentes. É necessário dissipá-las com o esplendor da verdade. A morte triunfou? É preciso apegar-se à vida. Somente assim poderemos sarar tantas feridas. Somente então o direito poderá readquirir a autoridade autêntica; somente assim voltará a resplandecer a paz, cairão as espadas e escaparão das mãos as armas. Mas isso acontecerá somente se todos os homens reconhecerem livremente o poder de Cristo e a ele se submeterem; e toda língua confessará "que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai" (Fl 2,11).

15. Quando a Igreja nascente encontrava-se oprimida pelo jugo dos Césares, apareceu no céu, a um jovem imperador, uma cruz, presságio e ao mesmo tempo autora da vitória esplêndida que imediatamente se seguiu. Eis que hoje se oferece aos nossos olhares outro sinal diviníssimo e augural: o Sagrado Coração de Jesus, sobreposto pela cruz e resplandecente, entre as chamas de luz vivíssima. Nele são postas todas as nossas esperanças; dele devemos implorar e esperar a salvação.

16. Finalmente não queremos que não seja expresso um motivo, desta vez pessoal, mas justo e importante, que nos levou a esta consagração: o ter Deus, autor de todos os bens, nos livrado, não a muito tempo, de uma doença perigosa. Esta honra suma ao Coração sacratíssimo de Jesus, por nós promovida, queremos que permaneça memória e sinal público de gratidão por tão grande benefício.

17. Por isso mandamos que, nos dias 9, 10 e 11 do próximo mês de junho, na igreja principal de toda cidade ou aldeia, além das outras orações se acrescentem todos os dias também as ladainhas do Sagrado Coração por nós aprovadas. E no último dia recitem-se, veneráveis irmãos, a fórmula de consagração, que vos enviamos com a presente carta.

Como penhor dos favores divinos e testemunhas da nossa benevolência, a vós, ao clero e ao povo confiado aos vossos cuidados, concedemos de Coração, no Senhor, a bênção apostólica.

Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de maio de 1899, no vigésimo segundo ano do Nosso Pontificado.

LEÃO PP.XIII

Fórmula de Consagração ao Sacratíssimo Coração de Jesus

Ó Jesus dulcíssimo, ó redentor do gênero humano, olhai para nós, humildemente prostrados diante de vosso altar. Nós somos vossos, e vossos queremos ser, e para poder viver mais estreitamente unidos a vós, eis que cada um de nós, hoje, se consagra ao vosso sacratíssimo Coração. Muitos não vos conheceram; muitos, desprezando os vossos mandamentos, repudiaram-vos. Ó benigníssimo Jesus, tende misericórdia tanto de uns quanto de outros; e todos os que atraís ao vosso santíssimo Coração. Ó Senhor, sede o rei não só dos fiéis que nunca se afastaram de vós, mas também dos filhos pródigos que vos abandonaram; fazei que eles voltem, quanto antes, à casa paterna, para não morrerem de miséria e de fome. Sede rei dos que vivem no erro ou que por discórdia estão separados de vós: chamai-os ao porto da verdade e à unidade da fé, para que, dentro em breve, haja um só rebanho sob um só pastor. Sede finalmente o rei daqueles que estão envolvidos nas superstições dos pagãos, e não recuseis tirá-los das trevas para a luz e o reino de Deus. Concedei, ó Senhor, incolumidade e liberdade segura à vossa Igreja, concedei a todos os povos a tranquilidade da ordem: fazei que de uma extremidade à outra da terra ressoe esta única voz: sejam dados louvores àquele Coração divino do qual nos veio à salvação; a ele a glória e a honra pelos séculos dos séculos. Assim seja.