Deus Absconditus

18/12/2022
Pe. Lemaître com o físico Arthur S. Eddington a bordo do navio que voltava da 6ª Assembleia Geral da União Astronômica Internacional, em Estocolmo, em agosto de 1938 [Arquivos UCL (Universidade Católica de Louvain, Bélgica)]. Eddington foi o primeiro a especular corretamente que a fonte de energia nas estrelas é a fusão nuclear entre hidrogênio e hélio.
Pe. Lemaître com o físico Arthur S. Eddington a bordo do navio que voltava da 6ª Assembleia Geral da União Astronômica Internacional, em Estocolmo, em agosto de 1938 [Arquivos UCL (Universidade Católica de Louvain, Bélgica)]. Eddington foi o primeiro a especular corretamente que a fonte de energia nas estrelas é a fusão nuclear entre hidrogênio e hélio.

"Não se pode entender a física moderna", disse-me um possivelmente sábio físico de partículas alguns anos atrás. Eu aceitei sua palavra.

Eu podia acreditar nele porque ele estava ensinando física de partículas na Universidade de Toronto. Provavelmente se precisa de qualificações para esse trabalho, raciocinei, e para obtê-las aposto que terá que passar em um teste.

Mas entender algo e passar em um teste são, como muitos alunos acabam aprendendo, duas coisas diferentes e que podem ser incompatíveis entre si.

Um exemplo disso vinda da física pode ser a teoria do "Big Bang", que (no futuro previsível) derrotará todas as outras explicações de origem cósmica em termos de plausibilidade. Como qualquer teoria alternativa de origem cósmica, ela não nos diz como o mundo começou. Não pode fingir ser "ciência estabelecida"; os não-cientistas fingem.

O que veio antes do Big Bang? A fé religiosa (não científica) pode sugerir que Deus já existia antes; e era "a singularidade". Mas Deus não cabe em uma singularidade; isso é apenas uma palavra.

A verdade é que não temos e não conseguimos ter a menor ideia do que aconteceu antes. Não é apenas indetectável. É inimaginável.

Pe. Georges Lemaître, o sacerdote católico belga e físico engenhoso que postulou o Big Bang, teve que lidar com um papa que era um entusiasta da ciência e que comprou a teoria de Lemaître muito rapidamente e de forma muito grandiosa. O próprio Lemaître teve que acalmar Pio XII de sua empolgação, pois ele pensava (como muitos ainda pensam) que o homem estava prestes a provar Deus, por meio da ciência.

Lemaître admitia que sua teoria cósmica estava em harmonia com o relato do Gênesis, mas sabia que harmonia não é identidade. O Concílio Vaticano I tratou disso, em sua apresentação sobre fides et ratio (fé e razão). O Concílio havia condenado o racionalismo, na ausência da fé; mas também condenou o fideísmo, que é a fé sem razão.

Este último é o erro mais comum hoje em dia, e é por isso que, eu suspeito, as pessoas, incluindo os cientistas, se deixam de cair nele, sem pensar. Mas, como outras heresias, pode-se cair de ambos os lados.

Pe. Lemaître - um homem verdadeiramente notável, de ampla realização cultural, como se aprende na excelente biografia de Dominique Lambert - era um reparador de erros sem discriminação. Não foi apenas o Papa cuja doutrina católica ele corrigiu. Ele também corrigiu a famosa doutrina da física de Albert Einstein.

O universo estático de Einstein era inconsistente com a própria teoria relativista de Einstein. Lemaître mostrou a ele que só poderia ser consistente com um universo em expansão. Einstein levou algum tempo para perceber que estava errado; enquanto o Papa Pio XII entendeu o ponto católico bem rapidamente.

Ele, o Papa Pio XII, caiu no "concordismo", como às vezes o chamamos hoje em dia; uma das heresias católicas mais brandas, embora ainda potencialmente mortais. Esta é a crença de que o mundo natural, conforme descrito nas Escrituras, pode ser descrito cientificamente da mesma maneira.

É uma tentação constante (como outras heresias) imaginar que Deus, como o inspirador último da Bíblia, estava antecipando acontecimentos nos séculos posteriores e deixando dicas para que os futuros nerds da ciência testassem em seus laboratórios.

Deus, creio que poderíamos dizer, não é tão amigo assim de nerds. As verdades sobrenaturais não são idênticas às verdades naturais, embora possam ser harmônicas. Na verdade, percebo que as Escrituras chegam ao ponto de sugerir isso ao ler Isaías.

Mas isso é um efeito da poesia, e não da ciência.

Dizer que a Escritura é uma obra de poesia não é rebaixá-la, aliás, pois a poesia pode ser ainda menos acessível do que a ciência para a pessoa educada nas condições modernas. Nós sequer começamos a apreciar sua função em nossa compreensão do mundo que Deus criou.

A poesia não é "apenas palavras" assim como São João Evangelista não é um simples verborrágico. (Há tantas coisas importantes que precisaremos reaprender.)

Mesmo o que é literalmente verdadeiro pode ser elevado ao poético, na presença do divino. O próprio Cristo era, no mesmo momento, um camponês palestino e Nosso Salvador. Ele mesmo não era redutível a fatores biológicos, assim como nós também não. A "pessoa" que descrevemos na linguagem, não é um objeto material simples e não pode ser descartada como se ela tal fosse. A descrição completa dela deve finalmente ir além da ciência, de como a maioria dos cientistas entende.

E assim é com o universo e seu Big Bang. A descrição de Lemaître do "ovo cósmico infinitesimal" do qual surgiu pode servir como metáfora e, através da matemática, como uma forma de poesia, adicional ao relato de Gênesis. Tteria igual efeito mesmo que o Gênesis fosse aceito como literalmente verdadeiro: pois a verdade científica ainda seria algo diferente.

Mas o que "realmente" aconteceu no início do Gênesis é algo que, em nossa condição natural e atual, não podemos saber, porque, é claro, não estávamos aqui quando o universo estava sendo formado.

E a fé não exige que finjamos que sabemos o que não sabemos. Só um fideísta iria tão longe e tropeçaria no mundo do concordismo.

Sejamos católicos por um momento. Deus não espera que mintamos pela causa da religião ou em qualquer outra causa. Não podemos reivindicar, ou insinuar timidamente, um conhecimento que está além de nossas possibilidades. Aceitamos a tradição e a valorizamos em seus próprios termos, que são altos o suficiente - sem diminuir e nem aumentar suas exigências a nós.

Se, como afirmam os cristãos, existe um Deus que pode ser vislumbrado no Jesus Cristo morto e vivo, aceitamos Sua divindade e autoridade. Mas não afirmamos que somos Cristo, se nossa fé estiver corretamente sedimentada.

Pensando naquele professor de física, cujo trabalho era ensinar o que ele não entendia completamente, encontro um certo sentido. Devemos permanecer modestos quando confrontados com coisas sobrenaturais. E, como Lemaître, devemos saber o que não podemos conhecer.

Autor: David Warren

Original em inglês: The Catholic Thing