As Origens Da Quarta-feira De Cinzas E Do Uso Das Cinzas

16/02/2021

O uso litúrgico das cinzas tem origem nos tempos do Antigo Testamento. As cinzas simbolizavam luto, mortalidade e penitência. Por exemplo, no Livro de Ester, Mordecai usou cilício(1) e cinzas quando ouviu sobre o decreto do Rei Assuero (ou Xerxes, 485-464 aC) da Pérsia para matar todo o povo judeu no Império Persa (Et 4,1). Jó (cuja história foi escrita entre os séculos 7 e 5 a.C.) se arrependeu com cilício e cinzas (Jó 42, 6). Profetizando o cativeiro babilônico de Jerusalém, Daniel (c. 550 a.C.) escreveu: 

"E voltei minha face para o Senhor Deus, implorando-o em oração e súplicas, impondo-me jejum, cilício e cinza." ~ Dn 9, 3

No quinto século a.C., após a pregação de conversão e arrependimento de Jonas, a cidade de Nínive proclamou um jejum e cilício, e o rei cingiu-se com um cilício e sentou-se nas cinzas (Jn 3, 5-6). Esses exemplos do Antigo Testamento evidenciam tanto uma prática reconhecida de usar cinzas quanto um entendimento comum de seu simbolismo.

O próprio Jesus também fez referência às cinzas. Referindo-se às cidades que se recusaram a se arrepender do pecado, embora tenham testemunhado os milagres e ouvido as boas novas, Nosso Senhor disse: "Se tivessem sido feitos em Tiro e em Sidônia os milagres que foram feitos em vosso meio, há muito tempo elas se teriam arrependido sob o cilício e a cinza."(Mt 11,21).

A Igreja primitiva continuou a usar cinzas pelas mesmas razões simbólicas. Em seu livro De Poenitentia, Tertuliano (c. 160-220) prescreveu que o penitente deve "viver sem alegria na aspereza do cilício e na miséria das cinzas". Eusébio (260-340), o famoso historiador da Igreja primitiva, relatou em sua A História da Igreja como um apóstata chamado Natalis foi ao Papa Zefirino cingido com cilício e com cinzas implorando perdão. Também nessa época, para aqueles que eram obrigados a fazer penitência pública, o sacerdote colocava cinzas na cabeça da pessoa que deixava a confissão.

Na Idade Média, cerca do século VIII, os fiéis que estavam para morrer eram deitados no chão sobre um cilício coberto de cinzas. O sacerdote abençoava o moribundo com água benta, dizendo: "Lembra-te de que és pó e ao pó voltarás." Depois da aspersão, o sacerdote perguntava: "Estás de acordo com o cilício e cinzas em testemunho de tua penitência perante o Senhor no dia do julgamento?" Ao que o moribundo respondia: "Sim, estou de acordo". Em todos esses exemplos, o simbolismo do luto, da mortalidade e da penitência é claro.

Posteriormente, o uso das cinzas foi adaptado para marcar o início da Quaresma, período de preparação de 40 dias (exceto aos Domingos) para a Páscoa. O ritual da "Quarta-feira de Cinzas" é encontrado nas primeiras edições do Sacramentário Gregoriano, que data pelo menos do século VIII. Por volta do ano 1000, um sacerdote anglo-saxão chamado Alfrico de Eynsham pregou: 

"Lemos nos livros, tanto na Antiga Lei quanto na Nova, que os homens que se arrependiam de seus pecados se cobriam de cinzas e cingiam seus corpos com cilício. Façamos, agora, esse pouco no início de nossa Quaresma, espalhando cinzas sobre nossas cabeças para significar que devemos nos arrepender de nossos pecados durante o jejum quaresmal." 

Como um aparte, Aelfric reforçou seu ponto ao contar sobre um homem que se recusou a ir à igreja na Quarta-feira de Cinzas e receber as cinzas; o homem foi morto alguns dias depois em uma caça ao javali. Desde então, a Igreja tem usado cinzas para marcar o início do período de penitência da Quaresma, quando nos lembramos de nossa mortalidade e lamentamos por nossos pecados.

Em nossa liturgia atual para a Quarta-feira de Cinzas, usamos cinzas feitas com ramos de palmeira queimados, distribuídas no Domingo de Ramos do ano anterior. O sacerdote abençoa as cinzas e as impõe na testa dos fiéis, fazendo o Sinal da Cruz e dizendo: "Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar", ou "Convertei-vos e crede no Evangelho". 

Ao iniciarmos este tempo sagrado da Quaresma em preparação para a Páscoa, devemos lembrar o significado das cinzas que recebemos: Lamentamos e fazemos penitência por nossos pecados. Nós novamente voltamos nossos corações ao Senhor, que sofreu, morreu e ressuscitou para nossa salvação. Renovamos as promessas feitas em nosso batismo, quando morremos para uma velha vida e ressuscitamos para uma nova vida com Cristo. Finalmente, cientes de que o reino deste mundo acabará, nós nos esforçamos para viver o Reino de Deus em nosso quotidiano enquanto esperamos a sua plenitude no Céu. 

Por: Pe. William Saunders

Original em inglês: Catholic Culture


Nota:

(1) Cilício é uma túnica, cinto ou cordão de crina, que se traz sobre a pele para mortificação ou penitência. O termo vem do latim "cilicinus" que quer dizer feito de pelo de cabra, ou "cilicium" que quer dizer tecido áspero ou grosseiro de pelo de cabra ou vestido de gente pobre. Hoje é conhecido como instrumento de mortificação voluntária ao lado do jejum e abstinência dentre outras formas.