A Riqueza Que Cega
![Lázaro e Dives, do Codex Aureus de Echternach, c. 1035-40 [Museu Nacional Alemão, Nuremberg]. “Dives” significa “rico” em latim.](https://6323b73651.clvaw-cdnwnd.com/24b39ffcea37433b4ba1d3b1f650338a/200002997-526bd526bf/lazarus-and-the-rich-man-11th-cent-1502x2048.jpeg?ph=6323b73651)
A assombrosa história do homem rico e Lázaro (Lucas 16:19-31) talvez seja melhor compreendida ao contrário, através da lente de onde os encontramos no final da história. O status de cada um na vida após a morte – o sofrimento do homem rico e a paz de Lázaro – revela a realidade de quem eles são. Sem os adornos, as roupas e os disfarces deste mundo, vemos a pobreza do homem rico e a riqueza de Lázaro. Vemos com mais intensidade o perigo das riquezas.
É uma parábola sobre o perigo da riqueza. Não sobre a maldade dos bens ou posses criados. Os bens mundanos obviamente têm seu lugar. Deus criou o mundo material para mostrar e comunicar Sua glória. Devemos usar os bens da Criação para glorificá-Lo e beneficiar os outros. Nosso Senhor não é marxista, e a propriedade não é roubo. Portanto, o problema não é a riqueza do homem rico em si.
Mas seríamos tolos em pensar que não há perigo na riqueza. Em um mundo decaído, os bens criados assumem uma importância desproporcional. Passamos a confiar neles, em vez de confiar em seu Criador. Na verdade, eles exigem uma espécie de lealdade, como descobriu o rico insensato (ver Lucas 12,16-20). É por isso que nosso Senhor nunca elogia a riqueza, mas apenas nos adverte contra seus perigos.
O primeiro perigo é a intemperança. Nossa natureza decaída nos inclina a usar nossos bens não para a glória de Deus e o benefício do próximo, mas para nosso próprio conforto e luxo. Assim, o homem rico mimava a si mesmo. Ele "se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se regalava". Assim, na primeira leitura, Amós repreende os indulgentes – "deitados em leitos de marfim, estendidos em sofás" – que "bebem o vinho em grandes taças e perfumam-se com óleos preciosos" (Amós 6,1.4-7).
Suas posses tornaram-se um fim em si mesmas, e não os meios pelos quais glorificam a Deus e fazem o bem aos outros. A intemperança nos leva a usar os dons de Deus não para o seu propósito, mas para nossa própria indulgência. O glutão come apenas por prazer e não para o bem do seu corpo. O homem lascivo busca o sexo apenas para gratificação e não para procriação ou união.
A intemperança leva inevitavelmente à complacência. Mais uma vez, o profeta Amós: "Ai daqueles que vivem comodamente em Sião!" Essa complacência é uma espécie de entorpecimento e cegueira, uma morte da alma para coisas mais nobres e elevadas. É difícil elevar o coração e a mente quando o estômago está pesado por causa de comidas e bebidas ricas.
Portanto, a repreensão de Amós não é apenas pelo luxo, mas pelo seu efeito, porque os tornou insensíveis ao que é importante. Eles não "se compadecerem da ruína de José". Ou seja, eles não se importam com o sofrimento do seu próprio povo. Assim também no Evangelho, o homem rico nem sequer repara em Lázaro. Não há qualquer menção a qualquer interação entre eles. Sua riqueza o cegou para a própria existência e o sofrimento de um semelhante à sua porta.
Essa complacência é revelada sobretudo quando o homem rico implora para voltar aos seus irmãos e avisá-los, para que não sofram o mesmo destino (já que aparentemente tinham riqueza semelhante). Abraão responde: "Se não ouvirem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite algum dos mortos". Algo os impedia de ouvir — de escutar — Moisés e os profetas. Na verdade, sua riqueza e luxo os entorpeceram e cegaram para o testemunho das Escrituras, e isso tornaria suas mentes resistentes até mesmo a alguém ressuscitado dos mortos.
A riqueza nos torna insensíveis não apenas às outras pessoas, mas também à verdade. O apego às coisas criadas mantém a mente presa. A clareza de pensamento requer desapego dos bens mundanos. Mais uma vez, a parábola do rico insensato nos mostra como a mente dos ricos está focada em manter e aumentar os bens materiais, em vez de se concentrar nas coisas permanentes e nas verdades eternas.
Dizem que Tomás de Aquino visitou uma vez Boaventura em seu escritório e perguntou-lhe qual livro lhe dava tão grandes insights teológicos. Boaventura não apontou para um livro, mas para o crucifixo como fonte de seu insight. Isso é mais do que uma história piedosa. Isso nos lembra que o desapego do mundo é necessário para ver todas as coisas com clareza, incluindo o mundo. Há uma razão para todas as grandes reformas na Igreja começarem com a pobreza. A riqueza nos cega. O desapego clareia a mente para ver o que precisa mudar e liberta a vontade para fazê-lo.
A complacência leva, por fim, a graves pecados de omissão. O homem rico não fez nenhum mal a Lázaro. Não há indícios de que ele o tenha roubado ou enganado de alguma forma. Ele não zombou de Lázaro nem o chutou enquanto ele estava caído. E esse é justamente o ponto. Ele não fez nada. Lázaro estava sofrendo à sua porta — não em alguma terra distante ou mesmo ao final da rua — e o homem rico não fez nada. O efeito desse grave pecado de omissão é facilmente resumido: se você não se importa com os pobres, irá para o Inferno.
Para evitar esse destino, precisamos voltar à visão do homem rico na Geena. O que o levou até lá foi a intemperança, a complacência e, finalmente, a negligência. Que o Senhor nos livre dos tentáculos da riqueza, para que possamos vê-Lo claramente e servi-Lo nos pobres.
Autor: Pe. Paul Scalia
Original em inglês: The Catholic Thing