A Hiperinflação Do Papado

05/02/2024

O papel do papado na mente de muitos católicos deixou de ser o centro da unidade da Igreja e passou a ser a fonte dos ensinamentos da Igreja.

Ao se ler o Catecismo da Igreja Católica de cabo a rabo, se perceberá que pelo menos 98% do conteúdo não tem nada a ver com o papado. A criação, o pecado original, a encarnação, a união hipostática, a ressurreição, os mandamentos morais contra matar e mentir, a inspiração das Escrituras, a graça sacramental, o sacerdócio exclusivamente masculino: nenhum deles faz referência ao papa. De fato, o assunto "papa" nem sequer tem sua própria entrada no índice de assuntos. O Catecismo centra-se na Sucessão Apostólica:

A ausência de referências extensas ao papa também é o caso quando se examinam os textos litúrgicos católicos e as inúmeras devoções católicas: Pouquíssimos mencionam o papa e nenhum está intrinsecamente ligado ao papado.

Da mesma forma, tanto o Credo Niceno-Constantinopolitano, que foi escrito no século IV como a sinopse fundamental da crença católica (1), não menciona o papa. Quando descreve a Igreja, ele a chama de "una, santa, católica e apostólica" - nenhuma menção "papal" (embora, é claro, o papado faça parte da marca "apostólica" da Igreja, como o Catecismo observa corretamente).

E, no entanto, quando ocorrem debates relacionados com a crença e prática católica, seja online ou na vida real, geralmente o papa e o papado dominam a discussão: "o papa disse", "Pio XII ordenou", "de acordo com João Paulo II…"

Essa dicotomia é gritante e reflete uma variedade de fatores históricos, incluindo os debates políticos europeus do século XIX e a longa sequência de pontífices bons e eficazes após o Concílio de Trento. O fator mais importante, no entanto, é que vivemos em um mundo pós-Reforma, no qual uma grande parte do cristianismo decidiu jogar o papado no lixo. Por causa disso, os católicos perceberam que precisavam defender o papa e o ofício papal, por medo de cair nos mesmos erros individualistas do protestantismo.

No entanto, como indica o contraste que destaquei acima, esse objetivo louvável se transformou em uma religião dominada pelo papa na mente da maioria dos católicos (e não católicos). Embora a grande maioria do catolicismo não esteja diretamente ligada ao papado, muitos católicos hoje fazem referência ao papado em quase todos os aspectos da vida católica.

Isso é mais evidente na área da moralidade. O catolicismo tem uma rica tradição moral, na qual uma infinidade de virtudes formam uma sinfonia de uma vida santa. A fortaleza, a justiça, a prudência e a temperança são os pilares sobre os quais essas virtudes se sustentam e, em juntamente com os dons do Espírito Santo, todas as virtudes trabalham juntas para a nossa salvação.

No entanto, atualmente, não se conseguiria saber disso ao ouvir muitos dos debates sobre moralidade. Hoje em dia, quase todas as questões morais são reduzidas a uma virtude: a obediência. E, normalmente, essa única virtude é reduzida ainda mais à obediência ao papa. Essa é a única virtude que importa; a única coisa exigida do católico para viver uma vida moral.

Se o papa diz que a contracepção artificial é errada, então se precisa evitar essa prática por obediência ao papa. Não porque a contracepção artificial viola a sexualidade humana de muitas maneiras e prejudica fundamentalmente o propósito do casamento, a procriação e a educação dos filhos. Não, é porque o papa disse isso.

O problema com essa distorção dos ensinamentos católicos é que ela coloca toda a moralidade sobre os ombros de um homem. Se um papa condena corretamente a contracepção artificial, tudo bem. Mas se um papa sugere (ou até mesmo seus conselheiros sugerem) que talvez haja "exceções" à lei moral nessa área, aí se abre um debate sobre o que deveria ser um tópico indiscutível - pelo menos se você entender o raciocínio por trás da proibição.

Esse problema, é claro, não é apenas hipotético nos dias de hoje. A frequente condenação da pena de morte pelo Papa Francisco (e sua reescrita do Catecismo para esse fim) levou muitos católicos modernos a acreditar que a pena de morte é sempre imoral, em contradição com milhares de anos de ensinamentos católicos. Não há discussão sobre a virtude da justiça ou a importância de proteger o bem comum. Em vez disso, é apenas "temos que obedecer ao papa nisso".

Isso não é conformidade com o ensinamento moral católico; isso é uma obediência semelhante a um culto.

E para deixar claro, isso não acontece apenas com os progressistas católicos sob o Papa Francisco. O foco excessivo no papado também foi o caso dos conservadores sob o Papa João Paulo II. De fato, essa visão desequilibrada remonta a mais de um século; desde o Vaticano I, o domínio da obediência ao papa como condição sine qua non da moralidade católica tem sido generalizado.

O século XX, de fato, poderia ser chamado de Século Papal na história da Igreja. Embora o papado sempre tenha sido um aspecto importante do catolicismo e, com o tempo, tenha se tornado a força motriz direta da Igreja, no século XX essa realidade atingiu o ápice.

Um reflexo do domínio papal pode ser visto no Credo do Povo de Deus, escrito pelo Papa Paulo VI como um resumo moderno de nossa fé. Primeiro, o próprio fato de um novo credo ter sido criado não por um concílio, mas individualmente por um papa, diz muito. E dentro do novo credo também vemos o foco papal. O papel do papa é mencionado três vezes e, logo na primeira linha sobre a Igreja, ele afirma: "Cremos na Igreja una, santa, católica e apostólica, edificada por Jesus Cristo sobre a pedra que é Pedro". Agora o papado está à frente e no centro da definição da Igreja, não é uma consequência de sua natureza apostólica.

Embora não haja nada de falso no credo do Papa Paulo VI e, de fato, faça sentido mencionar pelo menos uma vez o papel papal nos tempos modernos, pós-Reforma, a mudança de ênfase que vemos quando se trata do papado reflete o que se tornou uma distorção doentia do autêntico ensinamento católico.

Em termos simples, o papel do papado na mente de muitos católicos passou de centro da unidade da Igreja para fonte do ensinamento da Igreja. Ele é visto como escolhido a dedo pelo Espírito Santo e guiado a cada minuto por esse mesmo Espírito Santo. Assim, suas opiniões sobre vários assuntos sociais e políticos são vistas como quase revelações de Deus. É como se Deus nos revelasse coisas por meio do papa, e somente do papa. Questionar as opiniões do papa é questionar o próprio Deus.

O entendimento católico correto, por outro lado, coloca o papa no final da linha da revelação, por assim dizer, e não no início.

Primeiro, Deus revelou verdades sobre Si mesmo e sobre este mundo por meio da revelação natural (razão) e da revelação divina. Ele fez isso especialmente por meio de Seu povo escolhido, como vemos em todo o Antigo Testamento. Por meio da revelação natural e divina, passamos a conhecer verdades sobre Deus e sobre como devemos adorar e viver.

Depois, na plenitude dos tempos, Deus enviou Seu Filho para revelar-Se plenamente. Tudo o que precisamos saber para nossa salvação está completo em Jesus Cristo: não há necessidade de nenhuma nova revelação além Dele.

Jesus Cristo compartilhou essa revelação completa - o depósito da fé - com Seus apóstolos, tanto diretamente quanto após Sua Ascensão por meio do Espírito Santo. Os apóstolos receberam essa revelação e foram encarregados de proclamá-la às nações.

Após a morte dos apóstolos, seus sucessores, os bispos, receberam uma tarefa diferente. Embora também sejam encarregados de proclamar o depósito da fé, eles não recebem nenhuma nova revelação, mas, em vez disso, devem proteger o depósito da fé que lhes foi entregue pelos apóstolos. Além disso, eles o transmitem para a próxima geração de bispos.

Até esse momento, não há menção ao papa, o que pode parecer estranho para os católicos modernos convencidos de que o papado é o único ofício que importa. É somente naquela última etapa - do papel dos bispos - que o papa está envolvido.

Primeiro, ele tem a mesma tarefa que os outros bispos; afinal, ele mesmo é um bispo. Ele deve proclamar e proteger o depósito da fé e transmiti-lo fielmente a seus sucessores.

Diferente dos demais bispos, o papa tem uma segunda função. Ele também deve confirmar os seus irmãos  (Lucas 22:32). Quando há uma disputa entre os bispos, ele está lá para ajudar a resolvê-la. Ele é o tribunal final que decide entre os bispos que estão em debate. Essa é a razão, de fato, de seu dom da infalibilidade. Ele garante que os debates possam terminar e que a doutrina seja declarada de forma definitiva. Esse dom da infalibilidade não é um convite para fazer novas declarações ou, Deus nos livre, mudar os ensinamentos existentes.

Observemos, assim, como muitos católicos hoje colocam a carroça na frente dos bois. Ao invés do papa manifestar sua própria revelação de Deus, ele está, na verdade, no final do processo, recebendo o que lhe foi dado por seus predecessores, protegendo-o e, se necessário, resolvendo as disputas que surgem entre o episcopado. Ele não está criando novos ensinamentos ou mesmo encarregado de "desenvolvê-los"..

Pelo que escrevi até agora, pode parecer que não acho que o papado seja importante ou vital para a vida da Igreja. Isso não é verdade; se fosse esse o caso, eu ainda seria protestante(2) ou talvez me tornasse ortodoxo oriental. O papado, entendido corretamente, é de vital importância. É a "segurança contra falhas" do sistema; ele impede que a Igreja se desvie do depósito da fé quando os bispos como um todo não conseguem defendê-lo adequadamente. Como pode ser visto pelos ensinamentos multitudinários e contraditórios dos protestantes e pela falha dos ortodoxos orientais em manter certos ensinamentos ortodoxos, o papado é necessário.

Mas as heresias mais perigosas não são aquelas que rejeitam a verdade; são as que distorcem a verdade. Ao manter parte da verdade, elas se tornam mais atraentes. É verdade que o papado é importante, até mesmo necessário, mas não é verdade que ele seja o aspecto mais importante do catolicismo. É verdade que o papa deve proteger a fé, mas não é verdade que ele a cria. O papa não deve dominar a fé, mas deve ser seu humilde servo. Os católicos, portanto, precisam encontrar a linha entre a rejeição do papado e a hiperinflação dele.

Autor: Eric Sammons

Original em inglês: Crisis Magazine


Notas:

(1) - Existem dois Credos. O Símbolo ou Credo Apostólico, que nos vem dos inícios do Cristianismo, e o Credo Niceno-Constantinopolitano, que contém algumas verdades da fé que foram definidas posteriormente por diferentes concílios. Os dois Credos revelam a preocupação da Igreja diante de várias heresias que foram condenadas. O Credo Niceno-Constantinopolitano data do Concílio de Niceia, realizado no ano 325 da era cristã. Não existe uma regra que defina a qual credo recorrer nas liturgias. Isso varia de acordo com os costumes e tradições locais. O que se observa, entretanto, é que o Credo dos Apóstolos é mais comum no dia a dia, enquanto o Credo Niceno-Constantinopolitano é mais utilizado em celebrações solenes. Mais sobre a oração do Credo e porque é o resumo da fé cristã, acessar Canção Nova.

(2) - Eric Sammons iniciou seus estudos da fé católica em 1991 como protestante metodista/evangélico, convertendo-se à Igreja Católica em 1993.