A Escritura E A Tradição

23/05/2025

Os protestantes afirmam que a Bíblia é a única regra de fé, o que significa que ela contém todo o conteúdo necessário para a teologia e que tal conteúdo é suficientemente claro, de modo que não haveria necessidade da Tradição Apostólica ou do magistério da Igreja para sua correta compreensão. Na perspectiva protestante, toda a verdade cristã encontra-se nas páginas da Sagrada Escritura. Tudo o que está fora da Bíblia é simplesmente não-autoritativo, desnecessário ou errôneo.

Os católicos, por sua vez, reconhecem que a verdadeira "regra de fé" — conforme expressa pela própria Escritura — é a Escritura unida à Tradição Apostólica, tal como se manifesta no Magistério vivo da Igreja Católica, à qual foram confiados os ensinamentos orais de Jesus e dos Apóstolos, bem como a autoridade para interpretar corretamente as Escrituras.

No documento do Concílio Vaticano II sobre a revelação divina, Dei Verbum (em latim: "A Palavra de Deus"), é explicada a relação entre a Tradição e a Escritura:

"A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão ìntimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência "Assim, sob a luz do Espírito da verdade, esses sucessores podem, em sua pregação, conservar fielmente essa palavra de Deus, explicá-la e torná-la mais conhecida. Por isso, a Igreja não tira da sagrada Escritura somente a certeza de tudo o que foi revelado. A Tradição sagrada e a Sagrada Escritura devem, portanto, ser acolhidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência."

Os protestantes evangélicos e fundamentalistas, que depositam sua confiança na teoria de sola scriptura (em latim: "somente a Escritura"), formulada por Martinho Lutero, normalmente defendem sua posição citando dois versículos principais. O primeiro é: "Esses, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome" (João 20,31).
O outro é: "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa obra" (2 Timóteo 3,16–17).Segundo tais protestantes, esses versículos demonstrariam a realidade da doutrina do sola scriptura — ou seja, a suficiência exclusiva da teoria "somente a Bíblia".

Não é bem assim, respondem os católicos. Primeiro, o versículo de João se refere às coisas escritas naquele livro (basta ler com João 20,30 — o versículo imediatamente anterior — para entender o contexto da afirmação). Se esse versículo provasse alguma coisa, não provaria a teoria da sola scriptura, mas sim que o Evangelho de João, isoladamente, seria suficiente.

Segundo, o versículo do Evangelho de João apenas afirma que a Bíblia foi escrita para ajudar as pessoas a crerem que Jesus é o Messias. Ele não diz que a Bíblia é tudo o que precisamos para a salvação — muito menos que seja tudo o que precisamos para fazer teologia. Também não afirma que a Bíblia seja necessária para crer em Cristo. Afinal, os primeiros cristãos não tinham um Novo Testamento ao qual pudessem recorrer; eles aprendiam por meio da transmissão oral, e não por meio de textos escritos.

O mesmo vale para 2 Timóteo 3,16–17. Dizer que toda Escritura inspirada "é útil" é uma coisa; afirmar que somente a Escritura inspirada deve ser seguida é algo bem diferente. Além disso, há um argumento muito forte contra as alegações dos protestantes evangélicos e fundamentalistas. Quem o apresentou foi John Henry Newman, em um ensaio de 1884 intitulado A Inspiração em sua Relação com a Revelação.

O Argumento de Newman

Ele escreveu:

"É evidente que este texto – 2Tim. 3,16 – não carrega consigo nenhuma prova de que a Sagrada Escritura, sem a Tradição, é a única regra de fé. Porque ainda que a Sagrada Escritura seja útil para os quatro fins enumerados no citado texto, contudo aqui não nos diz que seja ela a única suficiente. O próprio Apóstolo requer o auxílio da Tradição (2Tes. 2,15). E mais: o Apóstolo se refere aqui às Escrituras que Timóteo aprendera em sua infância.

Porém, sabemos que grande parte do Novo Testamento ainda não havia sido escrito durante a infância de Timóteo; inclusive, algumas cartas dos apóstolos ainda não tinham sido escritas no dia em que Paulo escrevia este texto a Timóteo; e nenhum dos livros do Novo Testamento havia ainda sido posto na lista dos livros inspirados. Paulo se refere, evidentemente, às Escrituras do Antigo Testamento. Se este texto for tomado da forma como fazem os protestantes, então provaria melhor que os Escritos do Novo Testamento não são necessários como regra para a nossa fé".

Além de tudo isto, a citação que os protestantes fazem de 2Tm. 3,16 está fora do contexto. Quando lemos esta passagem no seu contexto, descobrimos que a referência feita por Paulo às Escrituras não é senão parte da exortação para que Timóteo tome como seu guia a Tradição e a Escritura. Os dois versículos que vêm antes do citado texto dizem: "Porém, continua tu no que aprendeste e tens crido firmemente, sabendo de quem o aprendeste, e como desde a tua infância conheces os escritos sagrados que podem instruir-te para a salvação por meio da fé em Jesus Cristo" (2Tm. 3,14-15).

Paulo diz a Timóteo que permaneça firme no que aprendeu, por estes dois motivos: 1º) Porque sabia de quem havia aprendido, isto é, do próprio Paulo; 2º) Porque havia sido instruído nas Escrituras. O primeiro destes motivos é obviamente uma referência à Tradição apostólica, o ensinamento oral que Paulo dispensou a Timóteo. Por isto, os protestantes precisam tirar do contexto 2Tm. 3,16 para chegarem à conclusão da [validade da] sola Scriptura. Porém, quando lemos o texto em seu contexto, verifica-se claro que está nos ensinando a importância da Tradição apostólica!

A Bíblia nega que apenas ela seja suficiente regra de fé. Paulo diz que muito do ensino cristão deve ser encontrado na Tradição, que é entregue de forma oral (2Tm. 2,2). Ele nos ensina a "permanecer firmes e conservar as tradições que têm recebido de nós, seja por palavra ou por carta" (2Ts 2,15).

Este ensinamento oral foi aceito pelos cristãos da mesma maneira como aceitaram os ensinamentos escritos que receberam posteriormente. Jesus havia dito aos seus discípulos: "Quem vos ouve, a Mim me ouve; quem vos despreza, a Mim me despreza" (Lucas 10,16). A Igreja, na pessoa dos Apóstolos, recebeu de Cristo a autoridade para ensinar, como sua representante. E Jesus enviou os Apóstolos dizendo: "Ide e fazei discípulos em todas as nações" (Mt 28,29).

E como deveria se cumprir esta ordem de Cristo? Por meio da pregação, da instrução oral. "A fé vem pelo ouvido, e se ouve pela pregação de Cristo" (Rm 10,17). A Igreja estaria sempre disponível como mestre viva. E um erro grave limitar a "palavra de Cristo" à palavra escrita apenas, ou também sugerir que todos os Seus ensinamentos se reduzem ao que foi posteriormente escrito. A Bíblia nunca sugere semelhante coisa.

O que é a Tradição?

Neste debate, é fundamental compreender o que a Igreja Católica entende por Tradição. O termo não se refere a lendas ou relatos mitológicos, nem a costumes transitórios ou práticas mutáveis (como vestimentas clericais, formas de devoção ou rubricas litúrgicas). Tradição Sagrada ou Apostólica são os ensinamentos transmitidos oralmente pelos apóstolos por meio da pregação. Esses ensinamentos em geral (talvez totalmente) coincidem com os contidos na Escritura, mas seu modo de transmissão é diverso.

São Paulo ilustra o que seja Tradição: "Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. ... Pois, portanto, seja eu ou sejam eles, assim pregamos e assim crestes" (1 Cor 15,3.11). E louva os que guardam a Tradição: "Eu vos louvo por vos recordardes de mim em todas as ocasiões e por conservardes as tradições tais como vo-las transmiti" (1 Cor 11,2).

Os primeiros cristãos "perseveravam eles na doutrina dos apóstolos" (Atos 2,42) muito antes de existir um Novo Testamento. Desde o começo, a plenitude do ensinamento cristão estava na Igreja, como a manifestação viva de Cristo, e não em um livro. A Igreja ensinante, com sua tradição apostólica oral, tinha autoridade. O próprio Paulo cita uma frase de Jesus que lhe foi transmitida oralmente: "Mais bem-aventurado é dar do que receber" (Atos 20:35).

Os fundamentalistas dizem que Jesus condenou a tradição. Eles citam Jesus dizendo: "E vós, por que violais os preceitos de Deus, por causa de vossa tradição?" (Mt 15,3). Paulo também advertiu: "Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas especulações da "filosofia", segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo" (Cl 2,8). Mas esses versículos condenam apenas tradições humanas erradas, e não as verdades que foram transmitidas oralmente e confiadas à Igreja pelos apóstolos. Essas verdades fazem parte do que chamamos Tradição Apostólica, que deve ser distinguida das tradições ou costumes humanos.

"Os Mandamentos dos Homens"

Consideremos Mateus 15,6–9, frequentemente citado por evangélicos: ""E assim invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradição. Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, quando disse: Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim. Em vão me prestam culto, pois o que ensinam são mandamentos humanos'".

Note-se que Jesus não condena todas as tradições, mas apenas aquelas que anulam a palavra de Deus. Nesse caso, tratava-se dos Fariseus fingindo a dedicação de seus bens ao Templo para que pudessem evitar usá-los para sustentar seus pais idosos — violando, assim, o mandamento de "Honrarás teu pai e tua mãe" (Ex 20,12).

Em outro lugar, Jesus instruiu seus seguidores a obedecer às tradições que não são contrárias aos mandamentos de Deus: "Os escribas e fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei e observai tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações, pois dizem, mas não fazem" (Mt 23,2-3).

O que os fundamentalistas e os evangélicos, infelizmente, costumam fazer é ver a palavra "tradição" em Mateus 15,3 ou Colossenses 2,8 ou em qualquer outro lugar e concluir que qualquer coisa chamada de "tradição" deve ser rejeitada. Eles se esquecem de que o termo é usado em um sentido diferente, como em 1 Coríntios 11,2 e 2 Tessalonicenses 2,15, para descrever o que deve ser crido. Jesus não condenou todas as tradições; ele condenou apenas as tradições errôneas, sejam elas doutrinas ou práticas, que minavam as verdades cristãs. As demais, como os apóstolos ensinaram, deveriam ser obedecidas.

A Igreja Indefectível

Como podemos saber quais tradições são apostólicas e quais são meramente humanas? A resposta é a mesma de como sabemos quais escrituras são apostólicas e quais são meramente humanas: ouvindo o Magistério ou a autoridade de ensino da Igreja de Cristo. Sem a autoridade de ensino da Igreja Católica, não saberíamos com certeza quais livros das Escrituras são autênticos. Se a Igreja nos revelou o cânone das Escrituras, ela também pode nos revelar o "cânone da Tradição" ao estabelecer quais tradições foram transmitidas pelos apóstolos. Afinal de contas, o próprio Novo Testamento declara que a Igreja é "a coluna e o fundamento da verdade" (1 Tm 3,15).


NIHIL OBSTAT: Concluí que os materiais apresentados nesta obra estão livres de erros doutrinários ou morais. Bernadeane Carr, STL, Censor Librorum, 10 de agosto de 2004

IMPRIMATUR: De acordo com o CIC 827 de 1983, a permissão para publicar este trabalho é concedida.+Robert H. Brom, Bispo de San Diego, 10 de agosto de 2004


Oiriginal em inglês: Catholic Answers