A Compreensão Errônea Do Evangelho

30/04/2025

Os cristãos falam muito sobre o Evangelho, mas o que ele é de fato?

Uma resposta fácil é que se trata de "boa nova". É isso que os termos grego e hebraico traduzidos como 'evangelho' significam. A palavra 'evangelho', do latim tardio evangelium, do grego clássico εὐαγγέλιον, "boa nova", composto de εὐ «bem, bom» e ἄγγελος "mensageiro, anúncio", significa.

Mas qual é a boa nova que o Evangelho contém? O que é, especificamente?

É aí que as coisas ficam confusas. Os cristãos não têm uma definição única e clara para o que é o Evangelho. Existem vários usos diferentes para o termo.

Isso é um problema porque São Paulo tem coisas severas a dizer sobre as pessoas que não entendem o Evangelho corretamente. Ele escreve,

Admiro-me que tão depressa abandoneis aquele que vos chamou pela graça de Cristo, e passeis a outro evangelho. Não que haja outro, mas há alguns que vos estão perturbando e querendo corromper o Evangelho de Cristo.

Entretanto, se alguém — ainda que nós mesmos ou um anjo do céu — vos anunciar um evangelho diferente do que vos anunciamos, seja anátema.

Como já vo-lo dissemos, volto a dizê-lo agora: se alguém vos anunciar um evangelho diferente do que recebestes, seja anátema (Gl 1,6-9).

Na visão de Paulo, qualquer pessoa que tenha um evangelho fundamentalmente diferente deve ser condenada e expulsa da comunidade cristã. Portanto, certificar-se de que você tem um entendimento correto do Evangelho é muito importante. No entanto, é aqui que encontramos problemas.

Às vezes, as pessoas usam o termo de forma muito ampla. Por exemplo, a GotQuestions afirma: "O evangelho é, em termos gerais, toda a Escritura".

O Evangelho é uma coisa boa, e as Escrituras são uma coisa boa, então parece inspirador vincular os dois conceitos e dizer que todas a Escritura pertencem ao Evangelho. Pode até parecer irreverente propor que há coisas nas Escrituras que não fazem parte do Evangelho.

Mas se pensarmos bem, surgem problemas com essa afirmação. Há versículos no Novo Testamento que dizem que André era irmão de Simão Pedro, mas será que realmente queremos dizer que o fato histórico de que André era irmão de Pedro - em alguma definição aceitável do termo "irmão" no primeiro século - faz parte do evangelho?

E quanto a Deuteronômio 3,11, que diz que Og rei de Basã, tinha um leito de nove côvados de comprimento? O comprimento do leito de um rei pagão realmente faz parte do Evangelho? A maioria dos cristãos não suporia isso. Pode ser interessante que o leito de Og tivesse nove côvados — ou entre três e quatro metros de comprimento —, mas esse fato curioso dificilmente justifica ser considerado um elemento do Evangelho.

O que está acontecendo nessa definição é uma identificação piedosa de um conceito sagrado — o Evangelho — com outro — as Escrituras. Mas não é assim que as próprias Escrituras usam o termo Evangelho.

Até mesmo o GotQuestions expressa reservas ao dizer que o Evangelho é a totalidade das Escrituras "em termos gerais", sugerindo que esse é um uso estendido do termo, e não como você o definiria corretamente.

É claro que a linguagem muda com o tempo, e as comunidades podem usar os termos da maneira que acharem melhor. Se alguns grupos identificam toda a Escritura com o Evangelho, eles podem fazer isso. Mas precisamos ser honestos quanto ao fato de que não é assim que as Escrituras usam o termo.

Outros cristãos que têm um entendimento muito amplo do Evangelho o tornam idêntico a todo o ensino cristão. Qualquer doutrina da fé faz parte do "Evangelho" segundo esse uso.

Por exemplo, o Livro de Concórdia dos Luteranos diz que o termo evangelho é usado de duas maneiras nas Escrituras e que

a palavrinha "evangelho" não foi usada e entendida sempre em um só e mesmo sentido, … em uma das acepções é usada de maneira que se entende sob ela toda a doutrina de Cristo, nosso Senhor, a qual ele, em seu ofício de pregação na terra e no Novo Testamento, ordenou que se observasse (Livro de Concórdia, Fórmula de Concórdia V, 4).

Aqui o termo Evangelho seria identificado com todos os ensinamentos da fé cristã ou, pelo menos, com aqueles ensinados pelo próprio Jesus.

Mas é muito fácil ver que não é assim que a Bíblia está usando o termo. Para dar um exemplo que eu com frequência uso, uma verdade da fé cristã é a existência de anjos. O próprio Jesus ensinou que os anjos existem. Mas os autores bíblicos não diriam que a existência dos anjos faz parte do Evangelho.

Um dos motivos é que a existência dos anjos é ensinada no Antigo Testamento, mas o Evangelho é algo novo. Ele não esteve conosco durante toda a história da redenção. Quaisquer que sejam a boa nova do Evangelho, ela está associadas ao Novo Testamento, não ao Antigo.

Outro problema com essa abordagem é que, se São Paulo estiver certo ao afirmar que qualquer pessoa com uma compreensão incorreta do evangelho deve ser considerada anátema, e se o Evangelho for identificado com a totalidade da doutrina cristã, então não seria possível manter comunhão com ninguém que divergisse em qualquer ponto doutrinário.

O único ponto doutrinário em que há discordância com alguém significa que essa pessoa possui um Evangelho falso, devendo, portanto, ser considerada anátema e excluída.

A maioria dos cristãos não compartilha dessa visão. No meio protestante, é comum a ideia de que os cristãos podem ter opiniões distintas sobre certas doutrinas, desde que haja concordância quanto aos "pontos essenciais".

A dificuldade surge ao tentar identificar o que deve ser considerado essencial. Existem diferentes opiniões sobre o que constitui um ponto essencial. Por exemplo, em muitas comunidades protestantes, é comum a ideia de que a salvação ocorre exclusivamente pela graça de Deus, sem depender dos próprios méritos.

Essa afirmação é verdadeira, mas, em alguns contextos, levou à identificação do Evangelho com o conceito de graça. Vale lembrar que o Livro de Concórdia luterano afirmou que o termo "Evangelho" é utilizado em dois sentidos, sendo um deles identificado com a totalidade da doutrina cristã. O outro, mais restrito, baseia-se na tendência luterana de dividir o ensinamento bíblico em duas categorias, denominadas por Lutero como Lei e Evangelho. O Livro de Concórdia continua:

Além disso, a palavra "evangelho" é usada em outro sentido, a saber, em seu sentido próprio, onde não inclui a pregação do arrependimento, mas, apenas, a proclamação da graça de Deus, (…)

Tudo quanto prega a respeito de nossos pecados e da ira de Deus, não importa como nem quando, é pregação da lei. O evangelho, por outro lado, é pregação que não mostra e não dá senão graça e perdão em Cristo (Livro de Concórdia, Fórmula de Concórdia V:6, 12).

Nessa visão, lei é tudo o que discute nosso pecado ou a ira de Deus, enquanto Evangelho é tudo o que trata da graça e do perdão em Cristo.

Tudo bem se os luteranos quiserem usar os termos 'lei' e 'Evangelho' dessa maneira em sua própria comunidade e classificar diferentes versículos nas Escrituras de acordo com essas duas categorias. Mas precisamos ser exegeticamente honestos sobre o fato de que não é assim que a própria Escritura emprega esses termos. São definições que vêm de uma época posterior e estão sendo usadas para classificar as Escrituras, mas as Escrituras não conceituam os termos dessa maneira.

Por exemplo, o significado principal do termo 'lei' no Novo Testamento é uma referência não ao pecado humano e à ira divina, mas simplesmente à Lei de Moisés que Deus deu durante o Êxodo. Embora essa lei tenha algo a dizer sobre pecado e ira, ela também contém promessas de graça e provisões para o perdão.

Outro problema com a ideia de estarmos unidos no que é essencial e, ao mesmo tempo, permitirmos a diversidade no que não é essencial, é que as pessoas também tendem a identificar as doutrinas distintivas de seu próprio movimento como essenciais e, portanto, como partes do Evangelho.

Por exemplo, alguns pentecostais usam a frase "Evangelho pleno" e afirmam que muitos protestantes não estão pregando todos os elementos necessários para uma apresentação completa do Evangelho. Um elemento que eles defendem como parte do Evangelho é a ideia de que Deus continua a conceder dons milagrosos. O site GotQuestions.org explica:

Um "cristão do Evangelho pleno" acredita que o Espírito Santo ainda está fazendo tudo o que fazia nos Evangelhos do Novo Testamento: Ele ainda está curando, dando o dom de línguas, realizando milagres, etc.

Portanto, não se tem o Evangelho completo a menos que nele esteja incluído os dons milagrosos. A maioria dos protestantes não ensina isso e, portanto, para os cristãos do Evangelho Pleno, a maioria dos cristãos tem uma versão truncada do Evangelho.

Um "cristão do Evangelho Pleno" acredita que o Espírito Santo ainda está fazendo tudo o que fazia nos Evangelhos do Novo Testamento: Ele ainda está curando, dando o dom de línguas, realizando milagres, etc.

Por outro lado, os calvinistas enfatizam o que eles chamam de "as doutrinas da graça". Esses são ensinamentos relacionados à graça e à predestinação que eles chamam de "cinco pontos do calvinismo" e que sem resumem em: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível, perseverança dos santos.

Muitos calvinistas acham que as doutrinas da graça são tão importantes que é preciso ensiná-las para ter um entendimento correto do Evangelho. Conheço calvinistas que defendem isso e, se você apontar que isso implicaria que os não-calvinistas não têm o Evangelho, eles admitirão timidamente que esse é o caso: Os não calvinistas realmente não ensinam o Evangelho.

Essas duas posições identificam o Evangelho com os pontos de vista de grupos específicos - alguns pentecostais e calvinistas - mas a maioria não identifica o Evangelho de forma tão restrita com seu próprio movimento.

Muitos procuram identificar o Evangelho com algo mais amplo - algo com o qual a maioria ou todos os protestantes poderiam concordar.

Por exemplo, há slogans no protestantismo como sola fide (em latim, "somente pela fé"). A alegação é que somos justificados somente pela fé, e esse foi um grande ponto de controvérsia durante a Reforma.

Para justificar o rompimento com a Igreja Católica, os protestantes a acusaram de ensinar um falso Evangelho. Eles diziam que Paulo pregava a ideia da justificação somente pela fé e, portanto, a sola fide expressava um elemento essencial do Evangelho.

Se alguém ensinasse que qualquer outra coisa além da fé estava envolvida na justificação, argumentava-se que ele estava, em algum grau, se engajando na autojustificação e acrescentando "obras" ao Evangelho, tornando-o um falso entendimento. Eles então apelaram para a passagem de Gálatas, onde Paulo condena qualquer pessoa com um entendimento diferente do Evangelho.

Há vários problemas com esse entendimento, e não temos tempo para analisá-los todos no momento. Entretanto, vale a pena ressaltar que "somente pela fé" não é a linguagem das Escrituras. A frase é usada apenas uma vez - em Tiago 2, 24 - onde é rejeitada.

Também vale a pena ressaltar que os católicos não têm problemas com a fórmula "somente pela fé", desde que você entenda corretamente a fé em questão. O Papa Bento XVI declarou,

"a expressão 'sola fide' de Lutero é verdadeira, se não se opõe a fé à caridade, ao amor. … Por isso, São Paulo na Carta aos Gálatas, sobretudo na qual desenvolveu a sua doutrina sobre a justificação, fala da fé que age por meio da caridade" (cf. Gl 5, 14).

À luz da crescente aproximação entre católicos e protestantes, alguns protestantes recuaram em relação à necessidade da fórmula "somente a fé" e se mostraram mais abertos à ideia de que o Evangelho requer apenas que seja a graça de Deus que nos salve. Eles podem identificar o Evangelho com outro slogan da era da Reforma, a ideia de que somos salvos sola gratia ("somente pela graça").

Uma das formas mais comuns de apresentar o Evangelho é que ele é a mensagem da salvação eterna. Trata-se do pecado e do perdão por meio de Jesus Cristo.

A ideia é que a pessoa é um pecador e não pode se salvar sozinho. Se for deixado por sua própria conta, passará a eternidade no inferno. Essa é a má nova que muitos pregadores dizem que é preciso entender para apreciar a boa nova ou o Evangelho.

A boa nova é que Deus não nos abandonou à nossa própria sorte. Ele enviou Seu Filho Jesus Cristo para morrer por nós e, assim, de forma generosa se oferece para perdoar nossos pecados se nos arrependermos e acreditarmos em Seu Filho. Dessa forma, podemos ser salvos do pecado e do inferno e passar a eternidade com Deus no céu.

Acontece que cada uma das afirmações que acabei de descrever é verdadeira. Mas é assim que o Novo Testamento conceitua o Evangelho, ou o Novo Testamento o entende de outra forma?

Exploraremos essa questão na próxima vez.

Autor: Jimmy Akin

Original em inglês: Catholic Answers